Flash 7
Se lhe perguntarem qual a estação do ano preferida, ele ficará reticente, sem saber o que deve responder, se a primavera se o verão. Com qualquer uma delas, ano após ano, vai enriquecendo o seu espírito com fragmentos soltos, indeléveis, e na sua cabeça os arrumará, em compartimentos estanques, para deles se servir, em excelente estado de conservação, um dia mais tarde, quando for adulto. A ausência do pai, emigrado há muitos anos em França, não é para ele motivo de tristeza, nem lhe provoca qualquer sentimento estranho; de muito pequeno se habituou a viver sem ele e, estranho será, quando daqui a uns anos, o pai vier a ocupar o devido lugar dentro da família. Agora, a sua principal preocupação, se assim se lhe pode chamar, é a escola, a ESCOLA DA VIDA.
Estamos em finais de Abril e há já muito tempo que as andorinhas cortam o ar em voos acrobáticos, silvando de alegria, como que a dizer a quem as vê e ouve: "A vida é uma breve passagem, aproveitemo-la." Desabrocham flores por todo o lado; nas beiras dos caminhos, nas pedras dos muros, nas árvores, nas terras que, não tarda, irão ser lavradas... e delas exala um aroma que enche a alma de quem o respira.
É a Primavera que lhe ensina muitas coisas que o vão preparar para a vida, a qual vai ser a sua verdadeira madrinha, ou, mais do que isso, a sua verdadeira mãe. Tem muitos amigos, mais ou menos da sua idade, com quem gosta de conviver e brincar, mas gosta de fazer as suas descobertas sozinho, metendo-se por vezes em aventuras arriscadas, que em determinadas situações, podem mesmo custar-lhe a vida, sem que ele tenha alguém por perto a quem pedir ajuda.
João, o miúdo desta história, tem dez anos e prepara-se para um dia de encontro com a natureza. Já tem no bolso de trás a fisga que ele próprio construiu. Muniu-se de uma navalha, cortou uma mimosa em forma de ípsilon, que aparou ao seu gosto, de uma câmara-de-ar velha de bicicleta cortou duas tiras de borracha com uma tesoura, de uns sapatos velhos retirou-lhe a língua e de um saco do adubo extraiu os cordões. Num dos bolsos da frente leva uma dúzia de pequenas pedras. Vejo-o atravessar a estrada de macadame em direcção ao "moitedo" e sei que não tardará a aparecer por aí com um pardal preso num cordel a imitar um verdadeiro caçador. É um miúdo curioso e que gosta de aventuras. Quantas vezes roubou ele os ovos dos ninhos para os estrelar, ou para com eles jogar à cabra-cega? E quantas vezes esperou ele que as aves pais acabassem de criar os seus filhotes para que, quando estivessem prestes a sair do ninho, lhes deitasse a mão e lhes torcesse o pescoço, para os comer depois de fritos num gole de azeite?
Não obstante a sua tenra idade, sabe distinguir, à nascença, uma cenoura de uma qualquer erva daninha, uma batateira de uma faveira, ou um nabo de uma couve. Diferencia, pelo aroma, uma rosa normal de uma rosa de alexandria. Mas no que ele é mesmo entendido, é a identificar as aves pelo chilreio; desde o majengro ao tentilhão, sem esquecer o papa-figos, o melro, a rola, o gaio ou a irritante milheiriça. Mas distingue-os não só pelo canto como também pelas suas cores e tamanhos, e mesmo pelos seus ninhos. Uma ocasião, vi-o muito calado nas suas observações e perguntei-lhe: "Então, há algum problema?" ao que ele me respondeu: "Estou a ver se distingo uma carriça macho de uma carriça fêmea." E eu sei que ele o conseguiu, tal como o conseguiu com muitas outras aves, apesar de neste caso a tarefa ser um pouco mais difícil.