16/12/10

Passear o cão

Durante todo o dia esteve um frio fora do comum, com os termómetros a acusarem temperaturas próximas dos 3 ou 4 graus centígrados. Agora que o sol acaba de se despedir e que a brisa vinda de norte se intensifica, o frio parece cortante.
Sentado na sua poltrona de pele em frente da lareira, o Sr. Manuel olha para o Óscar deitado numa outra poltrona enquanto pensa: “Se não fosse por tua causa, hoje já não saía de casa.” Mas tinha que ser. Vestiu o sobretudo, calçou-se, enfiou umas luvas nas mãos, pôs um chapéu na cabeça, colocou a trela na coleira do cão e saiu para a rua.
O passeio, desta vez, dadas as circunstâncias, não iria ser longo; era só dar tempo que o cachorro fizesse as necessidades e recolheria ao conforto do lar. Só que nem tudo é como planeamos e, sem nada que o explicasse, o faro do Óscar, detectou qualquer coisa no meio da relva, que mesmo antes de fazer as ditas necessidades, obrigou o dono a esperar impacientemente, pelo menos dez minutos até prosseguirem viagem. Coisas de cão, que nem mesmo o dono que o conhece, quase há uma dezena de anos, consegue explicar.
Não porque o Sr. Manuel o quisesse, mas porque o cão lhe tivesse dado essa indicação, ainda tiveram de passar pela rua dos sem-abrigo. Sim, porque o passeio não teria o mesmo sabor se o Óscar não fizesse esperar o seu dono alguns segundos a verter uns pingos na esquina de uma das caixas de cartão que serve de casa a um moribundo que lá dentro se encontra.
Já sentado de novo na poltrona o Sr. Manuel não pára de pensar: "O que terá feito o Óscar perder tanto tempo a cheirar na relva?"

28/11/10

Do pudor ao despudor

À empregada do hipermercado, causou-lhe impressão aquele casaco de cabedal ali pendurado, primeiro porque havia já algum tempo que aqueles casacos se não vendiam e depois, porque a gola aparentava já ter andado a roçar no pescoço de alguém. Ia ela com isto no pensamento, quando dela se acercou uma senhora de meia-idade transpirando pudor por todos os poros, ao mesmo tempo que lhe dirigia estas palavras: “Desculpe, eu acho que as pessoas que aqui trabalham deviam ter um pouco mais de vergonha…” “Então porque é que diz isso?” Questionou a empregada. “É que aquele casaco que ali está, vim eu aqui trazê-lo a semana passada porque tinha um defeito e já está ali pendurado, por certo, para enganarem mais alguém…” Respondeu a honesta senhora, referindo-se ao casaco rafado pelo seu pescoço anafado. “Ah, alguém o pôs aqui com a ideia de o devolver e depois esqueceu-se de o levar, mas eu vou já tratar disso.” Volveu a empregada pensando com os seus botões: “É preciso ter lata, esta porca teve a coragem de andar com este casaco o tempo que quis, vem devolvê-lo todo sujo e depois vem para aqui dar numa de moralista…” E se não lho disse nas ventas, foi para não pôr em risco o seu posto de trabalho.

12/10/10

A gare


O comboio estava a chegar à estação de Alverca, mas devido a uns problemas quaisquer, teve que parar cerca de 50 metros atrás do acostumado local. As pessoas que vinham na primeira carruagem, no hall próximo da cabine do maquinista, apressaram-se a premir o botão da porta com intenção de a abrirem, só que as portas ainda estavam trancadas porque o comboio ainda tinha que avançar mais uns metros. Não tardou que duas garotas de arganel no nariz, phones nos ouvidos e a ruminarem pastilhas elásticas, batessem com as mãos na porta que dava acesso à cabine do maquinista dizendo: “Então, mas esta merda abre ou não abre?” O maquinista, apercebeu-se da confusão e fez soar o seguinte aviso nos altifalantes: “Informam-se todos os passageiros de que o comboio ainda não chegou à gare, logo que chegue, as portas serão desbloqueadas.” Perante este aviso, as ditas cachopas ainda se indignaram mais e ladraram o seguinte, continuando a bater na porta: “Olha, agora quer-nos levar para o Oriente… Nós não queremos ir para o Oriente, abra mas é esta porcaria.”



Entretanto o comboio andou mais uns metros e as portas foram desbloqueadas. Uma das primeiras pessoas a sair dirigiu-se imediatamente para junto do maquinista e disparou: “Olhe lá, ó vizinho, para onde é que você quer levar esta coisa?” O maquinista ficou a olhar para ela embasbacado, se calhar a pensar o mesmo que eu: “De onde é que esta gente saiu? Só pode ter sido de um manicómio qualquer.”

11/10/10

A farsa

Recordo-me perfeitamente do rebentamento da “bomba”, quando há uns anos atrás a comunicação social denunciava os abusos sexuais de crianças da Casa Pia, acusando figuras públicas de estarem por detrás destes crimes hediondos. Carlos Cruz fora preso preventivamente por, na óptica do juiz, haver fortes indícios da prática de crime.


Lembro-me que, não obstante estes fortes indícios, se reuniram num almoço organizado por Fialho Gouveia, para demonstrarem solidariedade com o senhor, centenas de figuras públicas, das quais se destacavam: o maestro António Vitorino de Almeida, os cantores Rui Veloso, Paulo Gonzo e Paco Bandeira, os actores Raul Solnado e Marina Mota, a economista Helena Sacadura Cabral, os jornalistas Fernando Dacosta e Adelino Gomes, o criminologista Francisco Moita Flores e o ex-presidente da RTP e da Portugal Global João Carlos Silva.

Confesso que na altura fiquei perplexo com esta iniciativa, porque todos aqueles senhores não sabiam de forma alguma se estavam a apoiar um inocente ou um criminoso. Vamos pela pior das hipóteses: e se for um criminoso, não estará a ser precipitado este apoio? Toda esta farsa cheira-me a pressão sobre a justiça. Isto pensei eu. O tempo o dirá, continuei a pensar.

Agora que o dito senhor foi condenado, gostava de saber o que vai na cabeça dos solidários de quem pratica crimes destes… ou não acreditamos na justiça? Será que ela só é justa quando pune os miseráveis?

26/09/10

10 Unidades

Na caixa do hipermercado.

Funcionária: - Desculpe, o senhor não tem mais de 10 unidades?
Cliente: - ()
Funcionária: - Desculpe, o senhor não tem mais de 10 unidades?
Cliente: - A senhora acha que se eu tivesse mais do que 10 unidades, vinha para esta caixa? Acha que eu não tinha a hombridade suficiente para saber que não deveria vir para aqui? Ou acha que eu não sei contar?
Funcionária: - É que, sabe, as pessoas por vezes não reparam que esta caixa é só para quem tem 10 unidades…
Cliente: - Pois, mas eu não sou uma dessas pessoas…
Funcionária: - Pronto, tudo bem, o senhor tem toda a razão…
Cliente: - Não precisa de me dar razão, porque eu sei que a tenho. – E continuando em monólogo – Esta agora, devem pensar que um gajo é parvo ou estúpido, blá, blá, blá…

02/09/10

Convívio


Flash 11

O crepúsculo da tarde empresta ao horizonte uma mancha de sangue por detrás daquelas nuvens finas, que há minutos atrás, faziam lembrar enormes teias de aranha, antes que a noite cálida receba a garotada para umas horas de paródia no centro da povoação. É um convívio mais do que merecido, depois de um dia abrasador como este, em pleno mês de Agosto, em que as temperaturas rondaram os 40 graus centígrados e os putos, braços direitos dos pais nas tarefas do campo, nem nas horas de maior torreira tiveram um minuto de descanso. Quase todos andam descalços, e da cintura para cima, trazem vestidas as camisas com que vieram ao mundo. Consoante as idades, assim se organizam em grupos: uns brincam às escondidas, outros disputam corridas com distâncias previamente definidas, e os mais velhos concorrem ao pódio do mais valente. Nesta modalidade destaca-se o Zé, o mais matulão de todos, que consegue pegar numa pedra de granito com mais de 50 kg de peso e levá-la nos braços, encostada à barriga, sem a poisar vez nenhuma, num percurso de mais de 100 metros. É, sem dúvida um brutamontes. Mas o que ele tem de mais em força tem de menos em jeito. Tanto assim é, que quando as coisas viram para a zaragata, quase sempre é tosado pelos da sua idade apesar de terem o corpo bem mais franzino. Para que leve a melhor numa briga, precisa de agarrar o opositor, porque falta-lhe jeito para dar uns socos e uns pontapés. Desgraçado daquele que se deixa agarrar por ele, que nas suas mãos se transforma num verdadeiro saco de encher. É o que acaba de acontecer ao João que, debaixo das manápulas daquele labrego, está a levar poucas e boas. Mas já alguém foi chamar o irmão Manuel e ei-lo a correr, com a raiva estampada no rosto para o local onde o irmão não passa de um fardo de palha nas mãos daquele gigante. Manuel é um pouco mais novo que os outros dois e não tem nem metade da força do Zé… como irá ele resolver o problema? É isso, está mesmo ali à mão de semear um paralelo solto na calçada, no qual ele pega com as duas mãos e, com toda a sua força, dá com ele na cabeça do estafermo que cai imediatamente para o lado a jorrar sangue por todo o lado. É agora que o João já com algumas nódoas negras na cara, aproveita para se soltar do abutre. Resolvido o problema, os dois irmãos vão para casa, porque desta vez a paródia foi um pouco mais longe do que o habitual.

17/08/10

Alguém que explique



  1. Vivemos sob um sistema político denominado “Democracia”.

  2. A democracia é um sistema político representativo (do povo).

  3. O povo elege para seus representantes aqueles que considera terem capacidades (morais, intelectuais, blá, blá, blá) para os representarem.

  4. Os representantes do povo, baseados na lei fundamental, zelam pelos direitos e deveres dos seus representados.

  5. Um dos artigos primeiros da lei fundamental, diz que são tarefas fundamentais do estado – leia-se governo (s) – entre outras, a seguinte: d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais.

Perante isto, algumas perguntas:


  • Se vivemos numa democracia e todos os nossos representantes se dizem democratas, porque é que quem governa está sempre em desacordo com quem não governa e vice-versa?

  • Porque é que uns políticos acusam os outros de não serem capazes de implementar um modelo económico que resolva os reais problemas das pessoas, quando já temos 36 anos de democracia, já todos governaram, e nunca houve nenhum modelo económico capaz?

  • Vistas bem as coisas, quem é que os representantes do povo representam?

  • Porque é que quem governa (ainda que em minoria) tem sempre razão (sob o pretexto de que foram eleitos para governar) e quem não governa nunca tem razão?

  • Quantos anos são precisos mais de democracia, para que os representantes do povo ganhem maturidade política (se assim quisermos chamar-lhe)?

Reflexão
Por mim, alinho pelo demagogo alberto joão jardim: “isto já só lá vai com uma revolução”. Sim, porque o que tínhamos como melhor arma desta famigerada democracia – o voto – neste momento, não é mais que pólvora seca.

15/08/10

A tília

Flash 10

Quando o sol acorda e se levanta ao cimo da povoação, faz embater os seus raios naquela tília de cinco grossos caules e de copas muito altas, provocando uma sombra que atravessa a estrada e palmilha uns bons passos no terreno do tio Manuel, sombra essa que vai ganhando novas formas, consoante a hora do dia e a consequente mudança de direcção. Por volta das duas ou três horas da tarde, os agraciados com essa magnífica sombra são os moradores de uma casa que fica ali a escassos metros, o senhor Amaro, que é agente da guarda nacional republicana, a senhora Laura, que é costureira, e os filhos José e Zita que têm oito e seis anos respectivamente.

Joel é um miúdo de sete anos e é vizinho desta família. Como o José e a Zita são praticamente da sua idade, é com eles que costuma brincar a maior parte das vezes. Diz-se apaixonado pela Zita e marca sucessivos encontros com ela para namorarem. Têm até um esconderijo secreto numa vala contígua a uma garagem ali próxima, debaixo de uns ramos de pinheiro. Por vezes, ali estão eles dando beijinhos, fazendo de conta que não ouvem, se alguém chama por eles.

Estamos num dia de verão, são quase quatro horas da tarde e Joel encaminha-se, descalço e em tronco nu, com o seu jeito desengonçado, para mais um encontro com Zita, que o espera debaixo da tília. Pelo caminho cruza-se com a senhora Márcia. “Olá, Joel, não serias capaz de trepar àquela tília e apanhar-me umas folhas de chá?” Disse ela ao gaiato, estendendo-lhe um saco de plástico. O garoto, ao ver ali uma excelente oportunidade para demonstrar os seus dotes de trepador perante a sua amada, nem pensa duas vezes. “É p’ra já!” diz ele contente. Chegado à tília, lança um sorriso à namorada, agarra-se a um dos troncos e, com a destreza de um gato, em poucos minutos, já está num dos pontos mais altos da majestosa árvore. Volvidos alguns instantes e já com o saco cheio, desce com a mesma velocidade com que subiu. Vem, talvez, a meio do percurso e, oh desgraça… o que é que aconteceu? Foi o saco que ficou preso em algum lado, ou foi ele que colocou mal um dos pés e escorregou? Vejo-o saltar de ramo em ramo, completamente desamparado. Oh deus, o saco acaba de cair no chão e, não tarda, cai ele também. Olho para cima e vejo-o pendurado, dobrado de barriga para baixo, num dos ramos do fundo. A senhora Márcia já chora e lamenta-se de ter tido tão infeliz ideia Felizmente, não sofreu mais do que uns simples arranhões. Zita, no entanto, acaba de chamar a mãe para o que der e vier.

Mas eis que Joel acaba de descer, sem ajuda de ninguém e até parece que nada aconteceu.

14/08/10

Sonho

O retrato é paradisíaco. O casal passeia num vale ladeado de pequenos montes, formando como que uma muralha de protecção. Ele com o braço esquerdo à volta do seu pescoço, ela com o braço direito enlaçando a cintura dele. À sua frente o pequeno rebento de oito anos pula ufano, arremessando pequenas pedras para a água de um pequeno riacho de águas límpidas que corre sereno mesmo ali ao lado, acompanhando os seus passos e abafando com o seu marulhar, o tom das suas vozes. Acima das suas cabeças, o céu forma uma abóbada completamente azul. Dir-se-ia que vivem um momento de extrema felicidade. Atrás deles, um homem dos seus quarenta e poucos anos observa-os, feliz, por ver tanta felicidade.

Aproveitando um momento em que o garoto se abaixa para apanhar algumas pedras, o desconhecido aproxima-se e, abrindo as pernas, salta por cima dele. O miúdo, que não gosta da brincadeira, olha espantado para o intrometido e dirige um ar interrogador para os pais. Estes apartam-se num segundo e, no segundo a seguir, já o pai profere estas palavras: “Seu estúpido…” O estranho, nem sabe como reagir. Experimenta passar a mão na cabeça do pequeno para lhe pedir desculpa, mas ele esquiva-se e corre a chorar em direcção aos pais e, quando a família, já toda abraçada, se encontra a uma distância de cerca de dois metros do causador do fim de tão fugaz momento de felicidade, este desculpa-se da seguinte forma: “Peço desculpa, é que por momentos, vi no vosso filho uma das minhas filhas quando eram mais pequenas e não resisti à tentação de brincar com ele, como sempre fiz com elas. Não quis de forma alguma expô-lo ao ridículo.” Perante estas palavras, os pais entreolham-se, fazem mea culpa e dizem que compreenderam mal o gesto, ao mesmo tempo que pedem ao filho para dar um beijo ao senhor. Para deleite do estranho, o garoto assim faz.

E o céu continua azul e o rio ali está, acompanhando os seus passos e os montes continuam a servir-lhes de muralha de protecção.

11/07/10

O vigilante

Flash 9

A mãe dele não cabia em si de contente. Estava quase a completar as luas necessárias à sua gestação e ela, sempre convencida de que iria dar à luz uma menina, distribuía sorrisos e mostrava-se amável com toda a gente. Como já tinha três filhos, acreditava que Deus não lhe iria fazer a desfeita de lhe dar outro rapaz. Por isso a desilusão foi enorme, quando naquela noite de Fevereiro, entre choros, gemidos e de muita confusão, ela viu que afinal Deus não era seu amigo. O esmero e a dedicação que teve a fazer antecipadamente as saiitas e os vestiditos, acabaram por tornar-se gestos de fraca premonição. Ficou de tal forma zangada com Deus que nos primeiros dois ou três anos de vida, o miúdo não vestiu outra roupa que não fosse de menina.


É claro que as crianças são imunes às convenções dos homens e para Amândio, assim se chama o miúdo desta história, tanto fazia vestir uma saia ou umas calças; nunca se sentiu ridicularizado nem ferido na sua auto-estima, por isso brincava, indiferente às críticas e aos olhares zombeteiros das pessoas do povo. Vejo-o sentado ao cimo do quintal, de pernitas ao léu, desenhando na terra um quarto de círculo com a mãozita rechonchuda.

Um dos irmãos vigia-o enquanto faz os trabalhos da escola. Por certo, estarão também todos os elementos do universo de olho nele.

O fundo do quintal confronta com o caminho público com um muro que tem mais ou menos dois metros de altura. Do lugar onde Amândio se encontra até lá, não são mais de trinta metros, distância que ele, a gatinhar, demora um ou dois minutos.

Não sei como é que o irmão se descuidou, o que é facto é que a criança, qual serpente rastejante, já está à beira do muro, ao fundo do quintal, prestes a mergulhar para o caminho, como se de uma piscina se tratasse e, se não fossem os ditos elementos, a esta hora, não estaria nos braços da D. Marceana que, providencialmente, por ali está a passar e acaba de o apanhar da calçada ileso; não se vislumbra nem um pequeno arranhão. Felizmente que o irmão, com pouco mais de dez anos, nem sequer teve a noção da sua irresponsabilidade e, Amândio, daqui a pouco, vai continuar a brincar na terra, com o cão e com os gatos.

03/07/10

Guichet Nº 7

– Desculpe, pode dar-me uma informação, por favor? – Perguntou João com cortesia.
– Hã? – Balbuciou o outro do outro lado do vidro, no guichet número 7 da estação de Santa Apolónia, sem tirar os olhos do monitor que tinha à sua frente.
– Gostaria que me informasse se existem autocarros a assegurar os serviços da CP daqui para Alverca.
– Tem todas as informações que deseja neste panfleto. – Disse o outro, apontando com o dedo indicador esquerdo para um papel colado no vidro e continuando a olhar para o monitor que ficava um pouco para o seu lado direito.
– Olhe lá, seu cabrão de merda…
– O quê? O que é que você disse? – Berrou o outro olhando para João de frente, soltando gafanhotos e mudando de cor.
– Ah, afinal você é mesmo cabrão!... Meta todas as suas informações pelo cu acima. – Rematou João virando-lhe as costas.

19/06/10

Que horas são?

Àquela distância, de mais ou menos trinta metros, pareceu-lhe que ela não tinha mais do que vinte anos. Ele viu que ela gesticulava e, pelos seus gestos, parecia-lhe que ela queria saber as horas, pois apontava com o indicador direito para o pulso esquerdo, mas instantes depois, quando ele já se encontrava mais próximo dela, reparou que o mover dos seus lábios não correspondia à pergunta: “Que horas são?”, porque o tempo que ela demorava a falar era mais curto do que o necessário para a dita pergunta. Ao cruzar-se com ela, reparou que ela tinha um cabelo castanho claro empastado, de boneca mal estimada, em cima de uma cara macerada de rugas, que aparentava pertencer a uma mulher de sessenta anos, pendurada num corpo a que ele não dava mais de vinte. Numa das mãos, tinha um bloco de notas sujo e um cigarro, na outra, uma garrafa de um líquido qualquer. E dizia ela quase em desespero: “Relógio, relógio.” “O quê?” Perguntou ele. “Que horas são? Foda-se…” Insistiu ela, zangada. “São horas de comprares um relógio, minha, foda-se…” Respondeu ele em tom irónico, ao mesmo tempo que lhe mostrava o seu. “Desculpe, que horas são, por favor?” Retorquiu ela, arrependida. “São dez horas.” Volveu ele, amavelmente. “Muito obrigada.” Arrematou ela, ficando a olhá-lo nas costas, enquanto ele seguia o seu caminho

18/06/10

Saramago

Assistia eu ao Jornal da Tarde na RTP1 quando apareceu como notícia de última hora a morte de José Saramago. Momentaneamente, senti um calafrio percorrer-me o corpo, sem que eu saiba explicar porquê, foi como se me tivessem dado a notícia de que tinha morrido um familiar muito próximo. E, curioso, foi o facto de o meu mano ter tido a mesma reacção quando o informei por telefone.


Fizeram-se ouvir de imediato dezenas de reacções, das quais retive duas, uma de um dos mais promissores senhores das letras em Portugal, Gonçalo Tavares, e que dizia: “Hoje é um dia trágico, é um dia triste”. E outra do nosso presidente da República, mais ou menos com o seguinte conteúdo: “José Saramago é um escritor de projecção mundial e será sempre uma figura de referência da cultura nacional. Em nome dos Portugueses e em meu nome pessoal, presto homenagem à memória de José Saramago, cuja vasta obra literária deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras.” Considero estas duas declarações verdadeiramente antagónicas. A primeira é sentida e emocionada, a segunda, hipócrita. É esta a grande diferença entre um político (especialmente este) e um homem das artes. A declaração de Cavaco Silva fez-me recuar um pouco no tempo e levou-me até ao ano de 1993, altura em que um qualquer seu sub-secretário de estado, dito da cultura, riscou o nome de José Saramago da candidatura a um prémio literário europeu, a pretexto da não representatividade num país predominantemente católico, sob a sua supervisão e consentimento como chefe do governo. Isto por causa de uma obra intitulada “O evangelho segundo Jesus Cristo”, que o escritor tinha editado em 1991. Estamos, portanto, perante a mesma pessoa mas com duas caras. O porquê talvez só o próprio o possa explicar.

Como disse Gonçalo Tavares, até certo ponto é um dia trágico e triste, mas não esqueçamos do legado que Saramago nos deixa que, ao imergirmos nele, rapidamente nos esquecemos da sua morte. Aliás não há ninguém como ele para nos ajudar a compreender que a morte está permanentemente ao nosso lado, mas que só nos mata se nós quisermos. Acredito que a ele, tal como aconteceu a um certo violoncelista, nunca matará.

Sou um admirador entusiástico dos seus livros, dos quais já li a maior parte. Para além de gostar da forma como escreve, em que cada livro é uma enorme metáfora, partilho de grande parte das suas ideias. Gostei de todos os livros que li, mas destacaria três: “O memorial do convento”, pela história toda, mas especialmente, pela dupla de personagens Baltasar e Blimunda, e dos “Ensaios sobre a cegueira e lucidez”, reveladores da verdadeira crise social em que vivemos e da forma como dela nos alheamos.

Sei que pediste para não colocarem lápides e muito menos inscrições no lugar onde te depositarem, mas apetece-me dizer-te: “Obrigado por existires.”

15/06/10

Playlist

Sou mais ouvinte da Antena 1 do que da TSF, mas no meu entender, estas são sem dúvida as melhores estações de rádio nacionais. Influenciado pelo meu mano e pela sua Playlist no seu Blog (jotamantinando.blogspot.com) senti necessidade de fazer também a minha. Na verdade, eu e ele, partilhamos dos mesmos gostos musicais. A ordem porque aparecem não tem significado, pois a primeira poderia ser a última e vice-versa. Ei-la:

Estrela da tarde – Carlos do Carmo
Povo que lavas no rio – Amália Rodrigues
Ó gente da minha terra – Mariza
Terça-feira – Sérgio Godinho
Tunnel of love – Dire Straits
As quatro estações – Vivaldi
Another brick in the wall – Pink Floyd
Message in a bottle – Sting
Por este rio acima – Fausto
O lado errado da noite – Jorge Palma

Este exercício de reflexão foi deveras interessante, na medida em que me obrigou a recuar no tempo e a imergir nos cantos mais recônditos da minha memória. Foi fantástico. Aconselho.

A condescendência ou falta dela

Decorria o jogo entre as equipas da Argélia e da Eslovénia quando ouvi um comentário que achei interessante e que me leva a escrever estas linhas.

Um jogador da Argélia já estava "amarelado" quando, por uma jogada à margem das leis do jogo, lhe foi mostrado um segundo cartão amarelo e seguidamente o consequente cartão vermelho. Não tardaram os habituais comentários dos "entendidos" na matéria: "Na verdade o jogador tocou a bola com a mão, mas, tendo em conta que ele já ia em desequilíbrio e que não houve intenção deliberada de ludibriar o árbitro, acho que este podia condescender um pouco e não o punir com um segundo amarelo, sabendo que isso lhe custaria a expulsão do jogo. No entanto, o árbitro cumpriu com o que dizem as leis e contra isso não há nada a apontar."

Quase em simultâneo, ouvi uma notícia na rádio sobre um condenado à morte num dos estados dos Estados Unidos, em que esse condenado pediu ao juíz que preferia que a vida lhe fosse tirada, não pela tradicional injecção letal, mas sim por um pelotão de fuzilamento. O juíz em causa, depois de considerar os prós e os contras, anuiu com as suas pretensões. Também aqui surgiram de imediato as opiniões dos "entendidos" na matéria", no caso, a de um padre qualquer do país em causa, que ao ser interpelado sobre a questão respondeu: "Tirar a vida a um ser humano, quer seja por meio de uma injecção letal, quer seja por qualquer outro meio, é sempre um acto condenável, quer ética, quer religiosamente, mas uma morte provocada por um pelotão de fuzilamento é violência em cima de violência."

Confesso que se no primeiro caso não compreendi a condescendência, no segundo, não compreendi a ausência dela. E isto leva-me a uma pergunta que, se calhar, ninguém consegue dar-me resposta, (sim, porque as que existem, não me convencem) e que é a seguinte: "Afinal o que é a ética?" Diz-nos a filosofia: "É a disciplina que procura determinar a finalidade da vida humana e os meios de a alcançar, preconizando juízos de valor que permitem distinguir entre o bem e o mal." Um outro conceito estipulado é: "Conjunto de princípios morais por que um indivíduo rege a sua conduta pessoal ou profissional; código deontológico." O grande problema, é que quem interpreta o significado destas palavras são precisamente os seres humanos, os mesmos que julgam ou que deixam de julgar, que condenam ou deixam de condenar.

Todas as sociedades são complexas, mas a sociedade humana, dada a sua característica específica de ser dotada de raciocínio, como dizem os entendidos, é ainda mais complexa. Devemos ser condescendentes? Devemos. Devemos ser tolerantes? Devemos. Mas sobretudo, e antes de tudo o resto, devemos respeitar, e isso é algo que em tempo de condescendência, já quase não existe. Porque o respeito é como a felicidade, é feito de pequenos nadas e se existe a felicidade profunda e a felicidade superficial, também existe o respeito profundo e o respeito superficial e o tempo é de felicidade e respeito superficiais.

Se um condenado, tem como vontade última morrer por um pelotão de fuzilamento, não sejamos hipócritas a perdermo-nos em retóricas sobre éticas e religiões e tenhamos respeito pela sua vontade; quem sabe se isso não lhe dará alguma felicidade...

10/06/10

A Primavera


Flash 7

Se lhe perguntarem qual a estação do ano preferida, ele ficará reticente, sem saber o que deve responder, se a primavera se o verão. Com qualquer uma delas, ano após ano, vai enriquecendo o seu espírito com fragmentos soltos, indeléveis, e na sua cabeça os arrumará, em compartimentos estanques, para deles se servir, em excelente estado de conservação, um dia mais tarde, quando for adulto. A ausência do pai, emigrado há muitos anos em França, não é para ele motivo de tristeza, nem lhe provoca qualquer sentimento estranho; de muito pequeno se habituou a viver sem ele e, estranho será, quando daqui a uns anos, o pai vier a ocupar o devido lugar dentro da família. Agora, a sua principal preocupação, se assim se lhe pode chamar, é a escola, a ESCOLA DA VIDA.

Estamos em finais de Abril e há já muito tempo que as andorinhas cortam o ar em voos acrobáticos, silvando de alegria, como que a dizer a quem as vê e ouve: "A vida é uma breve passagem, aproveitemo-la." Desabrocham flores por todo o lado; nas beiras dos caminhos, nas pedras dos muros, nas árvores, nas terras que, não tarda, irão ser lavradas... e delas exala um aroma que enche a alma de quem o respira.

É a Primavera que lhe ensina muitas coisas que o vão preparar para a vida, a qual vai ser a sua verdadeira madrinha, ou, mais do que isso, a sua verdadeira mãe. Tem muitos amigos, mais ou menos da sua idade, com quem gosta de conviver e brincar, mas gosta de fazer as suas descobertas sozinho, metendo-se por vezes em aventuras arriscadas, que em determinadas situações, podem mesmo custar-lhe a vida, sem que ele tenha alguém por perto a quem pedir ajuda.

João, o miúdo desta história, tem dez anos e prepara-se para um dia de encontro com a natureza. Já tem no bolso de trás a fisga que ele próprio construiu. Muniu-se de uma navalha, cortou uma mimosa em forma de ípsilon, que aparou ao seu gosto, de uma câmara-de-ar velha de bicicleta cortou duas tiras de borracha com uma tesoura, de uns sapatos velhos retirou-lhe a língua e de um saco do adubo extraiu os cordões. Num dos bolsos da frente leva uma dúzia de pequenas pedras. Vejo-o atravessar a estrada de macadame em direcção ao "moitedo" e sei que não tardará a aparecer por aí com um pardal preso num cordel a imitar um verdadeiro caçador. É um miúdo curioso e que gosta de aventuras. Quantas vezes roubou ele os ovos dos ninhos para os estrelar, ou para com eles jogar à cabra-cega? E quantas vezes esperou ele que as aves pais acabassem de criar os seus filhotes para que, quando estivessem prestes a sair do ninho, lhes deitasse a mão e lhes torcesse o pescoço, para os comer depois de fritos num gole de azeite?

Não obstante a sua tenra idade, sabe distinguir, à nascença, uma cenoura de uma qualquer erva daninha, uma batateira de uma faveira, ou um nabo de uma couve. Diferencia, pelo aroma, uma rosa normal de uma rosa de alexandria. Mas no que ele é mesmo entendido, é a identificar as aves pelo chilreio; desde o majengro ao tentilhão, sem esquecer o papa-figos, o melro, a rola, o gaio ou a irritante milheiriça. Mas distingue-os não só pelo canto como também pelas suas cores e tamanhos, e mesmo pelos seus ninhos. Uma ocasião, vi-o muito calado nas suas observações e perguntei-lhe: "Então, há algum problema?" ao que ele me respondeu: "Estou a ver se distingo uma carriça macho de uma carriça fêmea." E eu sei que ele o conseguiu, tal como o conseguiu com muitas outras aves, apesar de neste caso a tarefa ser um pouco mais difícil.

20/03/10

O(s) roubo(s)

Sob o título "Furto", o artigo 203º do código penal português, no seu ponto 1, diz o seguinte: "Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.". Qualquer pessoa, à primeira vista, não teria dúvida nenhuma na interpretação deste artigo, mas se analisarmos bem, está ali uma palavrinha que pode fazer com que as coisas não sejam bem assim, que é a palavra ilegítima. Ilegítimo significa: que vai contra a lei, que não está conforme o direito, que vai contra as regras. Sendo assim, poderemos questionar-nos: mas então será legítimo uma pessoa roubar uma maçã para comer se estiver a morrer de fome, e não tiver outra forma de a conseguir? A resposta é, obviamente, não, porque na lei não existe nada escrito sobre esta questão. Mas existe sobre outras questões, como por exemplo: bilhetes dos transportes públicos, taxa de rádio e televisão na factura da EDP, despesas de manutenção cobradas pelos bancos, etc., etc.. Isto é, existe o roubo legal e o roubo ilegal. Quando uma empresa de transportes nos cobra 50 cêntimos por um pedaço de cartão que tem a validade de um ano, e que finda essa validade, ainda que o cartão esteja em condições, teremos que desembolsar mais 50 cêntimos para adquirir um novo cartão, estamos perante um roubo legal. Quando uma empresa como a EDP, que tem milhões de lucro por ano, nos cobra uma taxa de rádio e de televisão mensal, ainda que seja de uma casa onde só temos um motor de rega, estamos a falar de um desvio legal. Quando um banco, que todos os anos vê aumentada a sua percentagem de lucros, nos cobra uma taxa de despesas de manutenção, porque a miséria que ganhamos não cumpre o saldo médio que eles pretendem - se todos ganhassem tanto como eles, o problema não se punha - estamos visivelmente numa situação de subtracção legal de coisa móvel alheia. Mas quando um desgraçado assalta um supermercado para tirar meia dúzia de maçãs porque a fome é negra, toda a gente vê que isto é ilegal, ilegítimo e outras coisas começadas por "i".

Estamos em crise, é verdade, mas a verdadeira crise está na apatia com que assistimos todos, displicentemente, ao assalto aos nossos bolsos por parte de oportunistas sem escrúpulos protegidos por um estado, ainda menos escrupuloso.

O Inverno

Flash 6

É, sem dúvida, a pior estação do ano. Os dias são curtos e cinzentos, as noites são longas e frias e as casas tornam-se verdadeiros frigoríficos. Durante o Verão e o Outono, as pessoas, com a fábula de La Fontaine em mente, precavêem-se o mais possível para evitar males maiores. Para o gado, secam-se e arrumam-se canas, corutos e erva, e para fazer face ao frio, os putos, especialmente, desdobram-se em esforços para conseguir uma boa quantidade de lenha. Consigo vê-los como se agora estivesse a acontecer. Vão a caminho da Sta. Eufêmea, os três em cima da carroça conduzida por uma burra, o Manuel, dono do animal, e dois irmãos, o Fernando e o Daniel. Este é mais novo dois anos do que os outros dois que têm 14 anos. Levam consigo vários sacos que, no regresso, virão cheios de pinhas. São miúdos dotados de uma audácia e de uma destreza física fantásticas. Trepam aos pinheiros com a agilidade de um macaco e, já lá em cima, servindo-se da navalha que levam no bolso, cortam um pequeno ramo, do qual se servem para fazerem soltar as pinhas. Em pouco tempo têm o corpo um pouco esfarrapado, mas também têm uma quantidade de pinhas, suficientes para encherem dois ou três sacos. Não levam mais que três horas a encherem os 14 sacos a que se propunham. Cumprida a tarefa, vem o momento mais esperado: prende-se a burra a um pinheiro, arranjam-se algumas ervas para a entreter e ala dar um mergulho na “fonte da malguinha”, uma poça de água tépida escondida nos rochedos a escassos metros dali, onde já outros miúdos se banham numa alegria indescritível. Acabado o banho, secam os corpos numa breve exposição ao sol e regressam a casa verdadeiramente contentes.

Os irmãos Fernando e Daniel, não têm matas onde possam ir buscar a lenha de que precisam para o Inverno e então servem-se das matas dos outros. Felizmente que ninguém se opõe que apanhem as pinhas nem que se esgalhem os ramos fundeiros dos pinheiros. Mas como é que eles vão conseguir esgalhar esses pinheiros? Pregam duas varas com cerca de 3 metros cada uma, formando uma só vara com 6 metros aproximadamente e, na ponta, colocam uma roçadoura. A principal dificuldade está em pôr a vara na vertical, pois, devido ao seu comprimento, muitas vezes parte, antes que isso aconteça; mas uma vez o consigam, basta fazerem um pequeno corte com a roçadoura na parte do ramo mais próxima do tronco e deslocar depois a vara para a extremidade, puxando-o com um pequeno esticão. Ouve-se um pequeno estrondo, resultante do partir do ramo que, um segundo depois, cai a seus pés como por milagre. Repetem o gesto vezes sem conta, até conseguirem encher a carroça que a burra do Manuel irá buscar lá para o fim do dia.

16/02/10

Da política à ciência política

Da Política da antiga Grécia, mais não temos do que pequenos resquícios. Hoje temos a denominada ciência política.
O cidadão comum, perguntará, e com razão: "Mas que ciência? Estuda o quê?" Se consultarmos algumas enciclopédias encontraremos uma série de respostas bem diferentes das que o conhecimento empírico nos fornece e esta é a que poderemos considerar como a mais fiel. A ciência política, não é mais do que a ciência que se ocupa do estudo sobre a arte de enganar o próximo. E, diga-se em abono da verdade, que é uma das ciências que mais se tem desenvolvido nos últimos anos.
Não, não me refiro ao impulso dado na verdadeira separação de poderes, com a consequente isenção e imparcialidade do poder judicial, ou de uma assembleia verdadeiramente representativa, refiro-me sim à fabricação dos individuos que servindo-se da política, exercem os mais elevados cargos da nação.
Para se fabricar um político são precisos vários profissionais. A arte de enganar, se em muitos casos já nasce com a pessoa, na maior parte deles, é preciso algum suor para se conseguir o diploma, mas conseguem-se resultados brilhantes. Um bom político consegue fazer com que o cidadão comum acredite na maior mentira como se fosse a maior das verdades, tal é o ar de sinceridade que ele é capaz de lhe imprimir. Tudo é visto com rigor: os gestos, o tom de voz, a dicção, a repetição, o sorriso, a roupa, o público alvo, o timing etc. etc.
Os cargos políticos, que deveriam ser os mais nobres e mais importantes de uma nação, e que, por isso, na minha opinião, deveriam ser os mais bem pagos, acabam por tornar-se nos mais sujos e de mais fraca credibilidade. A política não é feita com o intuíto de resolver os problemas dos cidadãos, mas sim com o objectivo descarado de assumir o poder e de com ele se vangloriarem arrogantemente nas cadeiras e nos corredores da assembleia da república. De resto, como é que os senhores políticos podem resolver os problemas dos seus representados se nem o significado sabem de palavras tão simples como frio ou fome.
Mas o que é mais interessante observar, é o facto de as pessoas que formam este povo, em vez de estarem atentas às artimanhas que estes malandros usam para nos ludibriarem, distraem-se a ver programas de caca, divulgados em meios de comunicação social manipulados por esses mesmos políticos. José Saramago escreveu uma obra intitulada "Ensaio sobre a cegueira", onde pretende alertar a sociedade que está a encaminhar-se irremediavelmente para o abismo, mercê da sua própria cegueira. Eu acho que ele tem razão, as pessoas não enxergam mais do que um palmo à frente do seu próprio nariz e daí o estado lastimável em que nos encontramos.
Trinta e seis anos após a conquista da denominada democracia em Portugal, já deveríamos ter uma classe política com uma cultura mais responsável no que diz respeito aos reais problemas do povo que representam, no entanto, o que é que temos? Continuamos a assistir a jogos de poder infantis com o objectivo claro de auto-promoção e de domínio sobre os outros. Exemplos claros do que acabo de dizer: Recordo-me da candidatura de Manuel Alegre à presidência da república. Candidatou-se sem o apoio do PS, encostando-se ao que apelidou de movimentos de cidadania. Devo dizer que na altura achei que só um poeta poderia ter uma atitude tão digna e tão íntegra, mas rápido percebi que estava completamente enganado. Repare-se nas suas normas de conduta: Já se zangou com o líder do partido, manifestou-se contra as principais linhas de rumo da sua própria bancada, aliou-se ao BE num jantar de confronto de ideias e, a quando das últimas legislaltivas abraçou José Socrates perante as câmaras da televisão manifestando o seu apoio a uma política de esquerda possível. Isto sim, é ciência política!, este jogo sujo e descarado, com a intenção de chegar ao mais alto cargo da nação. Vale tudo... Agora recandidata-se à PR e fica à espera que o outro lhe devolva o abraço. Esperemos para ver o que acontece. Enquanto isso, assistimos impávidos e serenos. Veja-se, por outro lado, todo o teatro em volta do OE para 2010. Afinal o que somos nós nesta peça? Nada. Ou melhor, somos uns cordeirinhos que por ocasião das eleições nos dirigimos em rebanho às mesas de voto eleger esta cambada de mentirosos e ladrões. Se temos os nossos representante, se temos uma assembleia da república, porque é que não podemos assistir à discussão do OE? Porquê todas as jogadas de bastidores? Escondem-nos o quê? Porquê?
Oh maldita democracia!...

04/02/10

Páscoa

Flash 8
O quarto não tem mais do que 6 ou 7 metros quadrados, tem, no entanto, uma pequena janela por onde eles se evadem altas horas da noite para se juntarem aos outros miúdos da sua idade. Das paredes, onde a eterna imagem de um Papa qualquer jaz pendurada, começa a soltar-se uma pequena película branca resultante de uma tinta cansada de cobrir o barro que as forma. Incansável e imperturbável também se mantém, alheio ao tempo, um rosário de grandes contas pretas, que parecem ser de ébano ou de uma madeira parecida. Dada a exiguidade do quarto, a cama está encostada a uma das paredes. No colchão de palha, agora um pouco curtida por não ser substituída há já algum tempo, divertem-se os dois irmãos, João e Manuel, com 9 e 7 anos de idade respectivamente, enquanto esperam pelo sono ou pela oportunidade de sair pela janela. A parede onde a cama está encostada é contígua ao quarto dos pais. Dela ressoam gemidos abafados que eles não conseguem descortinar se são oriundos do ranger da cama, de gritos estrangulados de um momento de sexo ou das duas coisas.

O tempo é de quaresma, um tempo que há-de ficar bem vincado na memória destes dois miúdos. Para já, e porque o domingo de Páscoa ainda vai levar 40 dias a chegar, aproveitam o aconchego dos cobertores para "engancharem". O que é isso? Pois bem, entrelaçam os dedos mindinhos das mãos direitas formando dois elos, ao mesmo tempo que dizem: "Enganchar, enganchar para no domingo de Páscoa te mandar rezar, reza." Fica assim celebrado um pacto que tem como objectivo final a conquista de um pacote de amêndoas do tamanho que for acordado entre ambos. Ganhá-lo-á quem, depois da meia-noite de sábado da aleluia, isto é, o sábado que antecede o domingo de Páscoa - também chamado sábado maior sem que eu saiba porquê - disser ao outro a palavra "reza". Mas este enganchar, não é só feito entre eles, engancham também com quase todos os primos e é com estes que a coisa tem graça, porque quando chegar o dia, acordam ao cantar dos galos, agarram em dois cobertores e vão-se colocar em pontos estratégicos para dizerem alto e bom som: "reza", mal vejam os primos assomarem à porta.
Antes, porém, terão todo o cuidado para não comerem carne às sextas-feiras nem na quarta-feira de cinzas para não caírem na desgraça de cometerem um pecado mortal. Comê-la-ão aqueles que tiverem pago a "bula" ao senhor prior. Esperarão com ansiedade pelo domingo de ramos para, com a devida antecedência, fazerem uma visita aos ramos de loureiro das redondezas a fim de se certificarem dos que são mais perfeitos em galhos e flores, já que, na véspera desse domingo, munir-se-ão de uma pequena machada e de um canivete para os ir buscar. Depois enfeitá-los-ão com pequenos rebuçados da marca "provir" e pequenas tangerinas. No domingo de ramos a igreja parece uma verdadeira floresta. Não há quem não tenha um ramo de loureiro ou de oliveira na mão. São ramos de todas as formas e feitios. Os mais fortes levam verdadeiras árvores, como é o caso do tio Benilde e do tio Zé Plácido que por hábito empunham um ramo que varre as barbas ao S. Tiago que se encontra num dos pontos mais altos do altar.
Depois, virá o domingo de Páscoa. Por norma é um dos dias mais bonitos e felizes do ano. O padre desloca-se a pé com a sua comitiva, empunhando um grande crucifixo, para o dar a beijar a todas as famílias. Seguem-no várias pessoas entoando cânticos de aleluia. Os mais pequenos, como é o caso do João e do Manuel desdobram-se em esforços para conseguir visitar o máximo de casas a fim de angariarem a maior quantidade possível de amêndoas, que comerão nos dias seguintes. Acabada a visita pascal, as pessoas juntam-se no meio da povoação para fazerem vários jogos e dançarem ao som de um pequeno gira-discos colocado no parapeito de uma janela.

O banco do autocarro

Saiu mais cedo do trabalho e foi apanhar o autocarro à Cova da Piedade. Entrou no autocarro, obliterou o bilhete e quando ia para se sentar reparou que, mesmo ali nas barbas do motorista se encontrava uma tipa com os pés em cima do banco. Não dava para perceber muito bem que idade teria. Era uma pessoa obesa que mascava uma pastilha elástica a fazer lembrar uma vaca na fase de ruminação e que tresandava, qual porco empestado de excrementos. Virou-se para ela e perguntou "Posso sentar-me? E ela respondeu "Com tanto lugá vazio, tinha logo que vi pa est'aqui?" O motorista assistia à cena olhando de soslaio para o espelho retrovisor, mas não interferindo. "Pois, mas este é o lugar onde eu me quero sentar, que por acaso está todo sujo porque voçê pôs as suas delicadas patas em cima dele" Disse ele. "Pôa, olh'agora, qués vê" cuspiu ela. Depois de ela ter tirado os chispes de cima do banco, ele colocou-se de pé mesmo na sua frente. As outras pessoas que iam no autocarro acenavam afirmativamente com a cabeça enquanto o revisor desviava o olhar do retrovisor para se fixar na estrada e na condução.

06/01/10

Ver passar o combóio

É sabido que a maioria dos comboios suburbanos da CP que fazem o trajecto Azambuja/Lisboa, (os verdes de dois andares) não oferecem o mínimo de condições a quem neles viaja: O espaço entre bancos é tão reduzido que as pessoas quando se sentam ficam a embarrar com as pernas uns nos outros (já sentados, vêem-se obrigados a levantar-se sempre que uma pessoa se quer sentar ou sair do lado das janelas); não existem espaços para os passageiros colocarem uma pequena bagagem; não existe uma casa de banho e, como se isso fosse pouco, em geral, e devido à falta de educação e respeito que grassa por este país, por vezes parecem espaços onde acabou de se realizar uma feira, tal é a quantidade de lixo. Em suma, davam uma belas coelheiras.
Mas a falta de condições dos comboios não deveria servir de pretexto para determinados comportamentos como eu vejo no dia-a-dia que, na minha opinião, resultam de uma questão cultural, da qual não sei se alguma vez conseguiremos libertar-nos: falo dos pés em cima dos bancos, dos "head-phones" nos ouvidos com aquele tch tch irritante, das pessoas a falarem num tom de voz que dá a ideia de que são surdos, ou então que fazem questão que toda a gente saiba do que falam, dos telemóveis que não param de tocar, das pessoas que para falar ao telemóvel necessitam de falar em altos "berros", enfim, fica-se com a ideia de que vivemos num mundo onde a palavra "respeito" teima em impor-se. Depois, se alguém se mostra indignado com algumas das situações que referi, ouvem-se os seguintes desabafos: "Porra, parece que acordou mal disposto." ou "Por acaso o comboio é seu?" ou ainda "Arre, que você é chato com'ó caraças,"ou ainda pior "Não tem mais com quem marrar?"
Mas, na minha opinião, esta não é a maior tristeza, o que é realmente triste é não sabermos a quem devemos dirigir-nos para reclamarmos dos nossos direitos. Ninguém tem autoridade para fazer cumprir nada. Neste caso concreto, os revisores deveriam ser a autoridade dos comboios mas, não sei se por medo se porque eles próprios não têm educação, qualquer "puto" de 14 ou 15 anos faz deles o que quer.
A este propósito, apetece-me contar um dos muitos episódios a que assisti. Ia eu sentado mais ou menos a meio de uma das carruagens, entregue à minha acostumada leitura quando ouvi, vindo de próximo de uma das portas uma música qualquer que, não sendo de som demasiado elevado, fazia-se ouvir em toda a carruagem. Tratava-se de um jovem que estava a ouvir música com o seu telemóvel. Uns minutos depois, vi passar por ele dois agentes de segurança. Passaram. Uns instantes depois, chegou junto de mim o revisor, depois de ter passado pelo dito jovem e sem nada lhe ter dito. Perguntei-lhe: "Qual é o seu papel aqui dentro?" Respondeu-me: "Porquê?" Continuei: "Então o senhor tem a coragem de passar por um indivíduo que está a perturbar toda a gente aqui nesta carruagem e não lhe diz nada?" Resposta pronta do senhor revisor como se isto fosse uma norma de conduta: "Eu não lhe posso dizer nada, porque não existe nada escrito aqui no comboio que proíba ouvir música." "Ah é? Então da próxima vez que eu viajar de combóio, vou trazer um rádio Tijolo com o som no máximo para ver se o senhor gosta." Disse eu verdadeiramente zangado. E ele respondeu-me: "Isso não é a mesma coisa."
Ai país, país...