08/11/09

O ninho do mocho

Flash 4

O miúdo não sabe bem que sentimento o domina. Fez 6 anos há pouco tempo e, muito embora não seja imperativo ele ter que entrar este ano para a escola, o pai faz questão que ele comece a fase académica o mais cedo possível. Todos o têm por um garoto muito inteligente, dizem até que há-de ser alguém na vida. Ao que parece, não lhe vai ser permitido matricular-se na escola da sua aldeia, porque não aceitam matrículas de crianças com idade inferior a 7 anos: “Se não o deixam entrar aqui com 6 anos, vai ter que ir para Barreiros, porque lá, ao menos, não há problemas…”, diz o pai dele.

Este miúdo chama-se Manuel e vive com a avó, uma velhota com 70 anos. Não tem mãe, e o pai, do qual recebe uma ou duas visitas por mês ao fim de semana, trabalha em Lisboa.

Amanhã vai ser o seu primeiro dia de escola e por isso está apreensivo. Vai ter que apanhar uma carreira que passa a cerca de 100m da sua casa, num percurso de 3 Km. Creio ser a primeira vez que vai andar de carreira.

Estamos no mês de Outubro e a noite envolve já todas as casas da aldeia. A lua cheia banha de prata tudo à sua volta e o Manuel, agora deitado no seu exíguo quarto, completamente às escuras, porque já se apagou o candeeiro a petróleo, nem se apercebe do cirandar dos ratos no forro de madeira, nem do latir dos cães do povoado. Naquela pequena cabeça giram pensamentos à velocidade da luz com os quais, mais daqui a um pouco, vai ter pesadelos horríveis.

Sonha que o arrastam para uma fogueira preso por uma corda com a intenção de o queimarem. Não sabe a quem recorrer para pedir ajuda, pois não conhece ninguém. À sua volta todos o olham com desdém e com ar hostil. De repente, e sem saber que milagre se opera, vê-se livre das cordas que o prendem e sente que os seus braços têm a magia das asas de uma ave e em poucos segundos consegue alcançar as copas das árvores e misturar-se com os morcegos e outras aves nocturnas. Sobrevoa agora as casas da aldeia com voos rasantes de andorinha aos telhados prateados. Que sensação fantástica de liberdade. Mas já o coração se lhe aperta de novo, não consegue poisar. E agora? Ao passar junto a uma das carvalhas da escola, vislumbra o ninho de um mocho com o pai de sentinela, vigiando os filhotes. O sonho não lhe diz que não é tempo de ninhos, que esse chegará só na Primavera, e como tal este é um ninho verdadeiro. Experimenta poisar na carvalha, próximo do ninho do mocho e felizmente consegue. Sente-se, no entanto, incapaz de poisar no chão.

Acaba de acordar com um safanão da avó. “Vamos, Manuel, despacha-te que vamos ter de apanhar a carreira.” Diz ela. Entre o lavar as mãos e a cara, vestir e tomar o pequeno-almoço, decorrem alguns minutos, o tempo suficiente para chegar a hora da carreira. Já a caminho, a avó ordena ao Manuel que dê uma corrida, e no caso de a carreira chegar, a mandar parar. Ele assim faz. Corre com a pequena mochila às costas e ao vê-la levanta a mãozita esquerda. O condutor olha para ele, sorri e, ou porque pensa que o miúdo está a caminho da escola de Cepões, que é mesmo ali ao lado, e está a querer brincar, ou por qualquer outro motivo, não pára. Mas a avó tem outra interpretação das coisas e se a carreira não parou, foi porque Manuel não fez sinal de paragem ao condutor e então assenta-lhe uma valente chapada na cara e, completamente desorientada dos nervos, vai dizendo: “E agora? Vamos ter de ir a pé até Barreiros… Quando é que lá chegamos? Vamos despacha-me esses pés.” E vai-se distanciando dele cada vez mais. Já leva cerca de 20 ou 30 metros de avanço e essa distância entre ambos, vai-se manter até chegarem a Barreiros.

Como a avó não sabe onde é a escola, tem necessidade de perguntar. Entra dentro de um café e rápido obtém a resposta.

Bate à porta da escola e vem recebê-la um senhor que coxeia da perna direita e se identifica como professor Lameira. Tem um ar simpático e a avó explica-lhe o porquê do atraso. Ele diz que não há problema. “Deixe-o ficar.” Remata.

É agora que Manuel começa a ter a percepção de que o mundo não se resume à sua pacata aldeia, com as suas pacatas pessoas, de entres as quais as suas pacatas crianças com quem está habituado a brincar. Senta-se na cadeira que o professor lhe destina e deita-se sobre a secretária. E assim fica durante muito tempo. De repente sente os olhos encherem-se-lhe de lágrimas e o choro torna-se convulsivo. O professor Lameira não sabe o que fazer com ele. Ordena que se faça um intervalo antes da hora prevista com a intenção de fazer com que Manuel brinque com as outras crianças. Puro engano. Ele vai sentar-se a um canto debaixo de uma árvore, com a cabeça no meio das pernas e continua a chorar.

Do seu primeiro dia de escola, não tem mais nada para contar do que isto.

Durante uma semana, vai ser assim. No fim-de-semana, o professor Lameira, chamará a avó para lhe comunicar que o Manuel não pode continuar naquela escola, terá que ser feito o pedido de transferência de Barreiros para Cepões. E é isso que está a ser feito. Na próxima semana, Manuel vai deslocar-se a pé para a escola onde poderá aprender e brincar com os seus amigos de infância.