Passaram de salto a fronteira,
deixando para trás as mulheres e os filhos que visitavam no natal ou no mês de
agosto. Imigraram para o Alentejo em busca de uma côdea que lhes matasse a
fome. Dormiram noites a fio ao relento com o céu a servir-lhes de teto e as
estrelas de candeias, maldizendo a sua situação, e nunca os causadores dela. Trabalharam
arduamente vidas inteiras de sol-a-sol, quase sempre descalços e muitas vezes
atolados em água até aos joelhos. Viram os filhos e os pais a morrer de tenra
idade e acharam isso normal. Passaram muita fome e muito frio. Partilharam uma
sardinha por três e um ovo por dois. Amaram-se às escuras. Tiveram filhos sem
saber porquê, gerados sem saber como. Caminharam quilómetros sem fim. Trabalharam
até ao meio-dia com uma côdea de pão e um gole de bagaço. Acreditaram em tudo o
que a igreja lhes disse e os homens maltrataram as esposas. Pagaram aos
senhorios mais de três quartos da produção das terras. Se sonhos tiveram, foram
de gado, mato, estrume, sementeiras, colheitas e afins. Foram à missa ao
domingo agradecer a vida que levavam. Venderam parte das terras para curarem
doenças incuráveis e ficaram sem as terras e sem a vida. Tiveram uma vida a
levantarem-se muito antes do sol e a chegarem a casa muito depois de ele se
deitar.
Agora que a força é pouca,
deitam-se antes do sol e levantam-se depois dele (quando levantam). Têm um cão
por companhia, porque os filhos (tantos que eram!) deixaram de ter umas horas
para lhes dispensar. E esperam, esperam não sabem o quê. E cada dia que passa
não é mais do que isso. Ah, que saudade da sardinha, do ovo, do frio e da fome…
Um dia destes, só os movimentos
estranhos do cão e o cheiro fétido dos seus corpos irão fazer notar aos
vizinhos que o seu último sopro foi há cerca de uma semana na solidão dos seus
ais.