09/03/12

O desassossego do cão


Passaram de salto a fronteira, deixando para trás as mulheres e os filhos que visitavam no natal ou no mês de agosto. Imigraram para o Alentejo em busca de uma côdea que lhes matasse a fome. Dormiram noites a fio ao relento com o céu a servir-lhes de teto e as estrelas de candeias, maldizendo a sua situação, e nunca os causadores dela. Trabalharam arduamente vidas inteiras de sol-a-sol, quase sempre descalços e muitas vezes atolados em água até aos joelhos. Viram os filhos e os pais a morrer de tenra idade e acharam isso normal. Passaram muita fome e muito frio. Partilharam uma sardinha por três e um ovo por dois. Amaram-se às escuras. Tiveram filhos sem saber porquê, gerados sem saber como. Caminharam quilómetros sem fim. Trabalharam até ao meio-dia com uma côdea de pão e um gole de bagaço. Acreditaram em tudo o que a igreja lhes disse e os homens maltrataram as esposas. Pagaram aos senhorios mais de três quartos da produção das terras. Se sonhos tiveram, foram de gado, mato, estrume, sementeiras, colheitas e afins. Foram à missa ao domingo agradecer a vida que levavam. Venderam parte das terras para curarem doenças incuráveis e ficaram sem as terras e sem a vida. Tiveram uma vida a levantarem-se muito antes do sol e a chegarem a casa muito depois de ele se deitar.

Agora que a força é pouca, deitam-se antes do sol e levantam-se depois dele (quando levantam). Têm um cão por companhia, porque os filhos (tantos que eram!) deixaram de ter umas horas para lhes dispensar. E esperam, esperam não sabem o quê. E cada dia que passa não é mais do que isso. Ah, que saudade da sardinha, do ovo, do frio e da fome…

Um dia destes, só os movimentos estranhos do cão e o cheiro fétido dos seus corpos irão fazer notar aos vizinhos que o seu último sopro foi há cerca de uma semana na solidão dos seus ais.