13/08/09

Avelãs

Flash 1
Ali perto, numa casa de pedra granítica de dois pisos, moram dois irmãos, ele, José, ela, Emília. Ela, mais velha, mora no piso de baixo formado apenas por duas divisões, se assim se podem chamar. Terá 70, 80 anos? Diz-se virgem e que assim há-de morrer. O tempo pintou-lhe o cabelo, ainda farfalhudo, de branco e a falta de marido e filhos toldaram-lhe a maciez do rosto. Nas pernas usa umas ligaduras arrancadas a um lençol velho branco, porque as varizes teimam em rebentar-lhe a qualquer momento. Os seus passos são cautelosos devido às quedas sofridas. Ele, bastante mais novo, mas aparentemente mais velho, mora no piso de cima, formado por uma única divisão e separado do de baixo por duas simples escadarias, uma de pedra no exterior e uma de madeira no interior. Tem uns cabelos ralos, desgrenhados e esbranquiçados. Terá 60 anos? Adoptou o álcool como companhia, o qual lhe foi fiel até à morte. É magro, talvez porque a sua alimentação não vai além dos copos de vinho que lhe vão dando a troco das jornadas a rachar lenha ou a cavar terra. Se lhe dão algum dinheiro, deixa de trabalhar até que ele se acabe. Por volta da hora de almoço, vai à taberna, almoça dois copos de vinho e traz numa garrafa de litro, que antes foi de gasosa, um litro de vinho para o jantar. Depois canta. Canta de manhã, à tarde, à noite, pela páscoa, em Maio, pelo s. martinho, pelo natal, enfim, canta. Ou será que chora?... Por vezes a irmã discute com ele, porque é quase meia-noite, ela quer dormir e ele não dá folga às cordas vocais.

Do outro lado da rua, a um nível dois metros mais baixo, existe uma aveleira. A bem dizer, são várias aveleiras de troncos não muito grossos, mas que todos juntos formam uma ramada exuberante. Estamos no mês de Setembro e no chão é visível um tapete aveludado de folhas de várias tonalidades, como que a anunciar a proximidade do Outono. Escondidas nessas folhas, as avelãs aguardam o desbravar das mãos de uma criança. E ei-la, descalça, com uns calções esfarrapados vestidos e em tronco nu, acocorada no canto mais recôndito, deslizando agilmente sobre as folhas, evitando fazer ruído, tentando não ser vista por ninguém, a encher os bolsos daqueles frutos rotos, de onde hão-de escapar alguns pelo caminho.

Mas, ai que sorte desgraçada, o Sr. Amado, o dono do terreno, aproxima-se de aguilhada em riste, à frente do carro de bois, carregado de lenha para fazer face ao frio cortante do Inverno e pára para descansar um pouco mesmo em frente da aveleira. O coração do miúdo parece querer saltar-lhe do peito e agacha-se o mais possível para não ser apanhado em flagrante delito. Tentativa infrutífera. O Sr. Amado já levanta a voz e vocifera: “Ah, seu tratante, que eu vou-te matar”. Pobre coitado que, por momentos, deixa de ter a noção de si próprio. Ao corpo junta-se a alma e os dois, em névoa, deslizam sobre o restolho à velocidade do vento. O sangue que brota dos seus pés, só agora, debaixo de um carvalho, a alguns quilómetros de distância, é visível, enquanto ele, com duas pedras vai partindo desconfiado as avelãs e saciando a fome.