31/10/11

A louca

Flash 15

Na aldeia todos a vêem como louca. A sogra não gosta dela. Nunca gostou. Conta-se até que ela é a principal causadora da sua loucura. Muita gente diz: “No seu tempo de mocidade, a tia Dolores era uma estampa de mulher, bonita e desenxovalhada; depois que foi "enganada" pelo que é agora homem dela, negando-se depois a casar com ela, deu em cismar, até que o cérebro se lhe varreu, e os anos de internamento em vários hospitais psiquiátricos, acabaram-lhe com a frescura e a jovialidade e fizeram dela o que hoje é.”

O marido é funcionário do estado e uma pessoa respeitada por toda a gente da aldeia. Desde os seus tempos de menino que qualquer ordem da mãe é para ser cumprida religiosa e cegamente à risca, não se chegando a compreender se por medo se por respeito; tudo o que a mãe diz, é para ele uma sagrada escritura. Ter casado com Dolores, foi como ter-lhe dado uma facada no coração e ela nunca lho perdoará.

Objecto                    
Hoje é domingo gordo e a sogra da Dolores prepara-se para ir à missa. Ao descer as escadas de pedra que dão para a rua, depara-se com um objecto de madeira, artisticamente trabalhado, encostado a um dos vãos das escadas. “Foi aquela maldita que fez este trabalho. Um raio me parta se não hei-de dizer ao meu filho quando chegar…” E com este pensamento a pairar-lhe no espírito, arruma o dito objecto no curral das ovelhas e dirige-se para a igreja. Creio não conseguir ouvir uma única palavra que o padre diz. O seu íntimo fervilha de ódio e de impaciência; não vê a hora de contar ao filho o que a esposa se lembrou de fazer.

Chegado do trabalho, o filho, como é habitual, antes de ir ver a esposa e os filhos, vai visitar a mãe. Não demora mais do que cinco minutos; é o tempo suficiente para ficar a saber da grande novidade. Colérico e com a alma em polvorosa, dirige-se a casa onde Dolores, na sua inocência o espera. “O que é que tu fizeste à minha mãe?” Começa por perguntar ao mesmo tempo que lhe desfere uma bofetada na cara que quase a faz cair. “Sua vaca” e mais uma bofetada. “Sua porca” e mais um pontapé. “Sua badalhoca” e mais um puxão de cabelos, arrastando-a pelo corredor da casa. De nada serve ela dizer: “Ó homem, não me batas, eu não fiz nada, juro que não fiz nada, eu seja ceguinha, pela saúde dos nossos filhos.” Ao cabo de 10 minutos, Dolores, caída no sobrado a um canto, já só consegue dizer: “Ai… ai…”
Um dos filhos da louca desgraçada chega a casa depois deste episódio e ao ouvir a mãe neste lamento pergunta-lhe: “O que foi?” A mãe conta-lhe o que aconteceu e mostra-lhe o corpo repleto de nódoas negras. O filho vai guardar esta imagem numa das gavetas inapagáveis do seu cérebro.

Epílogo

Sabe-se agora que o autor do objecto deste flash foi um garoto de 13 anos para o apresentar como trabalho da disciplina de trabalhos manuais e que, estando no meio da rua, para evitar parti-lo, uma pessoa que ali passava com um carro de bois, agarrou nele e atirou-o para o vão das escadas. Paz às almas dos intervenientes.

23/10/11

Crise bendita crise


Venha ela! E que seja fulminante e arrasadora, e que arraste consigo toda uma nação decrépita para que renasça das cinzas, livre deste cancro que a tem vindo a consumir. Que leve velhos e novos, pobres e ricos, doentes e sãos. Uns porque acorrentados à sua ignorância, mais não fazem do que tagarelar na sombra, alheados de tudo, e sempre prontos a seguir o rebanho sem saber como nem para onde, outros porque aproveitando-se da inépcia dos primeiros, se encarregam de os esmifrar sem dó nem piedade até à última gota de sangue, já que de canibais falamos. Venha ela, e que leve mesmo esta bola algures pendurada no espaço, porque o equilíbrio do sistema continuaria perfeito, talvez mais perfeito ainda.


Será que há alguém que ainda acredita nesta corja de mentirosos inveterados? Será possível que 30 e tal anos depois, ainda há alguém que acredita numa palavra que seja de um qualquer político? Será que não é visível aos olhos de todos que os sistemas políticos denominados de “democracias representativas” ou de capitalismo liberal, mais não são do que formas ardilosas que os mais velhacos encontraram para levarem à penúria os mais ingénuos e os mais pobres de espírito? Têm estes biltres, autoridade moral para apelar a manifestações ordeiras, condizentes com um estado de direito? O que é afinal isto de estado de direito?


Tenho 50 anos. Quando se deu o 25 de abril de 1974, tinha eu 13 anos. Daí para cá, decorreram 37 anos. Foram 37 anos de mentiras e de falsas promessas. Será que há maior falta de respeito do que a mentira? Eu nunca persenti que o meu pai me mentisse, nem nas coisas mais banais, então e estes crápulas que fazem da mentira um hobby, reclamam de mim respeito e civismo?


Fala-se num buraco financeiro que ninguém arrisca a sua profundidade. Arrisco eu. Este buraco não tem fundo. E ninguém me convence de que todos o sacrifícios pedidos a este triste povo, mais não são do que sacos de favas para continuar a engordar as cavalgaduras que nos governam. Manifestações, destas de andar a passear pelas avenidas? Só se for para eles mofarem ainda mais da nossa maciez e da nossa serenidade. Que venha a crise e que leve a uma revolução a sério, sem cravos nos canos das espingardas, que varra deste rectângulo toda a imundice e que faça deste país um verdadeiro estado de direito, onde se torne visível o respeito mútuo entre governantes e governados e em que os primeiros dêem mostras, através de exemplos, de que são dignos de serem os representantes de um povo.

16/09/11

Povo que lavas no rio


O telejornal abriu com a notícia da queda de Kadhafi e veio-me imediatamente ao espírito aquele pedaço da letra de um fado de Amália: “Povo que lavas no rio, que talhas com teu machado as tábuas do meu caixão.” Esta notícia fez-me recuar ao meu tempo de infância e àquilo que me ensinavam da nossa história. Cresci na ilusão de pertencer a uma Grande nação, de espírito heróico e conquistador, à qual ninguém conseguia fazer frente. Volvidos alguns anos e posta a nu a falácia dessas recordações, vejo que não passamos de uns miseráveis e que sempre assim fomos.

No final do telejornal, bem no final, noticiavam a pré-disposição dos mais ricos de França em contribuir para a resolução financeira do país e a indisposição dos mais ricos de Portugal nesse propósito, argumentando que também eles são meros funcionários (Belmiro).

Comecemos pelos “media”: Tendo em conta a conjuntura de crise, qual seria a notícia que mais nos interessava (ao povo)? Logicamente a que informava se os mais ricos de Portugal estavam disponíveis em tirar-nos a corda da garganta (A não ser que estivéssemos em França, ou em Inglaterra, onde aí sim, a queda de Kadhafi é de primordial importância). Então, porque foi ao contrário? Porque outros interesses se levantam. Que podemos fazer contra isso? Tudo, diria eu.

Continuemos com o povo. Porque participa o povo no mesmo jogo dos grandessíssimos filhos da p. que nos roubam? Arrisco 3 hipóteses: a) por ignorância. b) por ingenuidade. c) por estupidez. Tendo, no evoluir da nossa história, dado mostras de que não somos estúpidos nem ingénuos, é mais do que lógico que é a ignorância que nos trai, sempre foi e não sabemos se sempre assim será. Vivemos num tempo em que temos armas que, não tendo gume, ponta ou pólvora, são bem mais eficazes em qualquer combate e, no entanto, a nossa ignorância, impede-nos de as usarmos. Usemos, por exemplo o boicote!... Mas usemo-lo em massa e por tempo indeterminado. Onde? Ora, vejamos: Não vendo as notícias! Não indo aos jogos de futebol! Não indo à missa! Não votando ou votando em branco! Não abastecendo de combustíveis! Etc., etc..

Acabemos com os senhores do dinheiro, a minoria do mundo que escraviza a maioria. O papel deles está explicado, compram os primeiros e servem-se da ignorância dos segundos, porque sabem que eles próprios se encarregam de talhar as tábuas do seu próprio caixão. Ámen.

19/08/11

O gaspar


O gaspar achou por bem aumentar o gás e a electricidade em 17%, ou melhor, segundo as suas palavras, o IVA destes dois serviços da taxa mínima para a taxa normal, porque sem números não escandaliza tanto, tanto mais que muita gente nem sabe do que se trata. Começo a pensar que não seria bem este o nome pretendido para este cargo, mas que talvez por dificuldades de encontrarem um baltasar ou um belchior  não tiveram outro remédio. Não sei se foi este o da mirra, mas faz todo o sentido porque para fazer mirrar o já por si magro zé-povinho, não há como esta excelência.

Mas não são propriamente as “novas” anunciadas por este mago que me atormentam, o que mais me revolta é o nosso jornalismo. Ouvi a entrevista da judite a esse gaspar e no final dei comigo a pensar: mas que porcaria de jornalismo é este? Porque raio é que estes jornalistas não fazem determinadas perguntas de interesse geral? Não sabem? Não querem? Quem controla esta maldita informação e com que finalidade?

Porque é que essa dita judite, não perguntou ao gaspar porque motivo aumentou ele o gás e a electricidade em 17% e deixou ficar os preços dos bilhetes do futebol, o preço dos espectáculos musicais ou o preço das touradas no valor mínimo da taxa (6%)? Ok, são os lobbies! Volta Eça, estás perdoado! “O povo paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam (…) e padres que rezam contra ele. (…) paga tudo, paga para tudo. E em recompensa, dão-lhe uma farsa.” Ou como um dos seus personagens, o Conde de Abranhos, que dizia: “Eu que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo, mas como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito…”

13/08/11

Thank You

Teria 60 anos, talvez, e aquele T H A N K  Y O U, tão compreensível quanto inaudível, que saiu dos seus lábios pintados de um vermelho vivo, acompanhado daquele sorriso tão doce, deixou-me a pensar: quais serão as preocupações do nosso cérebro enquanto ocupamos um determinado espaço público? São por certo as nossas contrariedades, as nossas alegrias, os noossos projectos, os noossos destinos, o nooosso bem estar, a nooossa companhia, o noooosso umbigo. Nunca, ou quase nunca, o nosso cérebro se ocupa com o nosso semelhante.

Era um dia de muito calor e as pessoas escolhiam os passeios à sombra. Tornava-se estreito aquele passeio para tanta gente, toda ela com tanta pressa de chegar não sei aonde. Só ela parecia não ter pressa nenhuma. Encostou-se a um caixote do lixo que estava preso na parede do edifício e esperou que a multidão que vinha em sentido contrário passasse. Eu seguia no sentido da multidão e quando cheguei próximo do caixote do lixo, encostei-me a ele do lado oposto ao dela dando a entender que era a vez de ela passar. Ela agradeceu-me com aquele T H A N K  Y O U e seguiu o seu destino. Quis dizer "Não tem de quê", porque na realidade, eu não tinha mesmo de quê, mas a única coisa que consegui foi abanar a cabeça. Alguns metros mais à frente senti que, por instantes, ela ainda me seguiu com os olhos, muito embora eu não me tivesse virado para trás.


22/06/11

O circo


Foi humilhante, fernandito, mas deixa-me que te diga, tu mereceste; aquele episódio da eleição do(a) presidente da Assembleia da República roçou as raias do ridículo. Cheguei mesmo a ter pena de ti. Parecias uma barata entontecida com sheltox. Vá lá que no meio daquela cambada toda lá apareceu alguém com um bocadinho de bom senso a dar-te a mão, como quem dá a um cego que saiu fora do trilho. Foi digno de uma das melhores cenas de circo a que assisti nos últimos tempos. Confesso que te tenho seguido com alguma atenção desde que surgiste na ribalta e de dia para dia fico cada vez mais confuso na apreciação que faço da tua pessoa. Afinal, quais são as tuas pretensões? O que é que vai na tua cabeça? Será que depois daquele miserável episódio ainda estás disposto a comer na mesma gamela e a chafurdar na mesma pocilga desses seres que se dizem ser os representantes do povo? É claro que tu és igualzinho a eles, (ou melhor, quase igual, porque ficou patente que não passas de um patinho feio) queres um tacho sem dares a mínima importância à forma como o consegues. Depois, à semelhança dos outros todos, és um mentiroso compulsivo. Será que acreditas mesmo que ainda há alguém em Portugal que dá crédito a alguma das tuas palavras? Deixa-me recorda-te só duas frases que proferiste a quando da tua candidatura à presidência da república: “Eu não aceitarei nenhum cargo partidário nem governativo. Partido político nem pensar… nunca.” (http://www.youtube.com/watch?v=BUIooqx26SE). Não te dás conta que é por causa de pessoas como tu que Portugal está como está? Deixa-me dar-te um modesto conselho. Se te resta um pouco de vergonha e dignidade, desiste dessa viagem em que te meteste, porque se neste momento estás atolado até aos joelhos, não tarda sentires a lama nos gorgomilos, e aí, estás irremediavelmente perdido.

23/05/11

Os abutres

O que graça por aí, é a desgraça dos desgraçados, é a lei da selva. Alguém disse: “O povo português parece-se com uma lombriga, ao ver-se fora da caca morre.” Seria interessante fazer-se um estudo para se chegar à conclusão do porquê deste espírito tão estupidamente pobre.

Alenquer serviu de protótipo para o arranque da televisão digital terrestre. A partir de uma determinada data, a população iria deixar de poder ver televisão se não fizesse nada para receber o sinal digital. Excelente oportunidade para os abutres sobrevoarem a zona, já que lá em baixo vagueava um povo moribundo de conhecimento, que à simples pergunta de um repórter: “Já ouviu falar na televisão digital terrestre?” Começou por gaguejar e acabou por responder: “Não, o que é isso?” Não quis o repórter obter respostas certeiras, porque se o quisesse, bastaria que perguntasse: “Qual é o nome do personagem x da novela y?” E a outros: “Quem vai jogar a final da liga Europa?” E os abutres viram naquela resposta a oportunidade de atacar, o manjar estava à disposição. As vítimas ainda praguejaram, mas de nada lhes valeu, porque as aves de pescoço depenado, já há muito que estudavam dos céus a forma de lhes pôr as patas em cima.

28/04/11

O Prémio

Flash 14

Na aldeia, nem toda a gente tem forno, de modo que quem o não tem, vê-se na necessidade de pedir a quem o tem, que lhe faça o favor de lhe permitir cozer lá o pão. Para evitar percalços, esse pedido foi feito com algumas semanas de antecedência. A lenha que o vai aquecer, já para lá foi transportada ontem em pequenos molhos. O forno pertence a uma família abastada e fica no meio da aldeia. De frente da casa do forno existe um largo bastante grande e uma fonte. É um lugar propício às brincadeiras das crianças enquanto esperam por um pedaço de bôla quente. Numa casa ali próxima, o senhor do alambique faz aguardente. O pão já está no forno. Vai levar algum tempo a cozer. No largo, os putos brincam às escondidas. Alguns dos miúdos foram esconder-se próximo do alambique. Ao vê-los ali, o alambiqueiro desafia: “Deixo beber quanta aguardente quiser a quem me for buscar um cântaro de água à…” Não precisa de acabar a frase, pois já o Chico corre todo contente em direcção à fonte. “Bebe dali daquele jarro, rapaz, bebe até caíres de cu.” Diz-lhe o homem em jeito de agradecimento. É o que o Chico faz. Até parece que o jarro tem água. Cansados de brincar às escondidas os putos dirigem-se ao recreio da escola para jogar à bola. Todos se riem das quedas que o Chico dá. Faz-se noite e regressam ao forno. O Chico cambaleia. Ninguém se preocupa, todos pensam que ele está na brincadeira. Já no forno, o pão está quase cozido. Um dos miúdos alerta um dos adultos: “O Chico tem espuma na boca.” Sentado num vão da escada, espuma pela boca e revira os olhos. “O que é que o meu filho tem? Ai que o meu filho morre.” Clama a mãe do garoto. “Foi o senhor do alambique que lhe deu aguardente.” Acusa o que alertou para a espuma. Felizmente a aldeia tem um taxista que neste momento se encontra em casa e não mora longe dali. A confusão é geral. “Alguém que telefone ao pai dele.” Ouve-se opinar. “Não deixem queimar o pão.” Lembra alguém mais lúcido. Rápido o táxi percorre os nove quilómetros que distam ao Sátão, mas mais rápido foi o pai do Chico, que menos tempo levou a percorrer os vinte quilómetros de Viseu ao Sátão. O irmão do Chico ainda corre atrás do táxi até à estrada, a chorar e um pouco desorientado. Não sabe bem o que se passa, apenas sabe que qualquer coisa de grave está a acontecer ao irmão. Que felicidade a do Chico, o senhor doutor está no consultório e, com uma mangueira, num instante lhe retira do estômago a aguardente que ainda lá tem. De regresso a casa, o Chico é levado para a cama e, desta vez, não vai poder comer um pedaço de bôla quente com pedaços de toucinho.