07/09/09

Domingo

Flash 2

Os galos dão o primeiro sinal do aproximar sorrateiro de mais um dia. O seu canto une o povoado com ondas sonoras, que se fossem visíveis, assemelhar-se-iam à teia de uma aranha. Se observarmos com atenção, chegaremos à conclusão de que entre eles, existe uma disputa no pódio de bem cantar. Surgem depois os melros com volatas melodiosas, anunciando que o sol está prestes a surgir detrás dos carvalhos centenários e frondosos do recreio da escola primária. É domingo e o sino da igreja que acaba de receber os primeiros raios de sol, movimenta-se alegre como um baloiço, fazendo soar badaladas em todas as direcções, chamando os fiéis para a missa que começa às dez horas. A azáfama é grande; faltar à missa, é o mesmo que dizer que deixa de ser domingo, para não falar da penitência a cumprir quando confessarmos ao senhor prior a nossa falta. Todas a pessoas do povo se preparam esmeradamente para visitar a casa do senhor.
Numa casa contígua à fonte velha que jorra água de uma nascente vinda dos lados do “moitedo” e que dadas as suas características de ser fresca no verão e tépida no inverno, é procurada por todas as pessoas, mora a Sra. Margarida com os seus dois filhos, o Avelino e o Manuel.

Entra-se para casa por uma porteira de madeira com cerca de três metros de largura, que quase sempre está aberta. Avançamos por um manto fofo de mato que o Manuel costuma trazer da serra em canastros à cabeça. Para já, este mato evita que as pessoas sujem os pés na lama, mas mais tarde, depois de curtido, servirá para estrumar a terra. Virando à direita, temos acesso ao piso superior através de meia dúzia de degraus de pedra de granito, no cimo dos quais existe um pequeno patamar. Se continuamos em frente, dirigimo-nos à cozinha, se virarmos à direita, entramos para a sala que por sua vez dará acesso a um pequeno quarto. A adega e o curral dos animais ficam por baixo daquelas duas divisões. A cozinha não tem chaminé e tem como única abertura, a porta de entrada. No tecto podemos ver as ripas e os caibros negros pelo fumo e pela fuligem, segurando as telhas caneladas. Algumas destas telhas estão partidas. Os utensílios da cozinha resumem-se a duas ou três panelas de ferro, três ou quatro bancos de madeira e um pequeno armário também de madeira, escurecido pela cinza e pelo fumo, onde se esconde a louça ou o que vai sobrando dela.

A Sra. Margarida tem à volta de 80 anos. Veste de preto desde que a conheço. Diz que é uma forma de guardar luto pelo marido, falecido há uns anos atrás, vítima de uma doença provocada pelas minas de minério. É uma senhora que tem uma corcunda que causa impressão. É de estatura baixa e quando anda quase chega com o nariz aos joelhos, pois para além da corcunda, a sua coluna vertebral faz quase um arco completo. A pele da cara é completamente enrugada e dos seus olhos pequenos corre um líquido cristalino que não sei distinguir se são lágrimas, se é resultado da idade avançada ou de uma qualquer alergia. Sustenta-se numas pernas muito finas, manchadas pelas varizes já secas do calor da lareira.

O filho mais velho é o Avelino. Aparenta ter à volta de sessenta anos. É simpático. Sempre que pode, junta-se aos miúdos pequenos para brincar com eles. Joga com eles as cartas e conta-lhes anedotas. Os pequenos adoram-no. É magro e quase sempre usa um colete cinzento e um chapéu preto de tecido. Fala muito pausadamente e está sempre bem disposto.

O Manuel é deficiente mental. Parece ter cinquenta anos. Anda quase sempre descalço, seja qual for a estação do ano. No corpo usa uns andrajos que se resumem a uma camisola esfarrapada a mostrar o peito forte e umas calças rotas que mais parecem umas ceroulas. Tem uma força descomunal, da qual se serve para pôr os canastros na cabeça carregados de mato ou de ramos de pinheiro. Ao contrário das outras pessoas, não costuma ir à missa, aproveita essa hora para ir buscar mais uma carrada. Acaba de chegar a casa com um canastro na cabeça, no preciso momento em que a mãe e o irmão chegam da missa. Atira o canastro para cima do manto de estrume e sobe as escadas esbaforido. Não sei o que se passa naquela cabeça demente, só sei que ouço a mãe a chorar, o irmão a discutir e ele a praguejar dizendo: “Parto a louça parto o caco”. E vai dizendo esta frase à medida que se ouvem cacos de louça a cair no sobrado. A mãe tenta protegê-la mas ele assenta-lhe uma lambada que a atira ao chão. E só desiste destas investidas, quando o irmão se serve de um pau e o ameaça com pancada. É por isso que ele acaba de sair de casa dizendo coisas imperceptíveis. E eu pergunto-me: “O que é que aqueles desgraçados vão comer e de que louça se vão servir?”