07/12/09

Cristina

Flash 5

Dos cinco irmãos, Cristina era a mais velha. Era uma menina esbelta com uma desenvoltura fora do comum. Escondia os seus 16 anos por detrás de um corpo perfeito de mulher onde se salientavam dois seios empinados capazes de fazer qualquer homem suspirar. O cabelo preto, de caracóis largos, escorria-lhe quase até ao meio das costas e a pele da cara e das mãos denunciava que tanto as altas temperaturas do Verão, como o frio cortante do Inverno daquela região da Beira interior, não eram para ela um obstáculo.

Habituada a sacrifícios desde pequenina, trabalhando por vezes de sol-a-sol, Cristina agradeceu a Deus, como uma dádiva caída dos céus, a oferta de um trabalho de mulher-a-dias por parte de um abastado fazendeiro que morava longe da povoação, a troco de comida, roupa lavada e uns míseros tostões. Os pais, por sua vez, também estavam gratos porque, se por um lado, beneficiando do dinheiro que ela iria ganhar, poderiam comer mercearia e bacalhau pelo menos uma vez no ano, por outro, era menos uma boca que tinham para alimentar. É verdade que lhes iria faltar a maior força de trabalho mas, tendo em conta que os outros filhos estavam a crescer, rápido apareceria quem a substituísse. Irío, por exemplo, que era dos irmãos o que se seguia na pirâmide das idades, já estava com 14 anos e, praticamente, já tomava conta da lavoura sozinho.

De início as coisas não foram fáceis, porque sabendo nós que o trabalho não iria ser nenhuma afronta para Cristina, haveria que contar com a integração na nova família, aquela a quem a partir dessa altura, teria de justificar vários porquês, como o de a loiça não estar lavada, de a casa não estar arrumada, de o almoço não estar pronto, de o gado não ter comida, etc., etc.. Foi mais de um mês de contidos suspiros, de pesarosos soluços e de choros reprimidos, mas, enfim, por imposição ou necessidade, o ser humano tem esta característica fantástica, a tudo é capaz de se adaptar.

Trabalhava naquela casa havia cerca de dois meses e, supunha ela, tinha passado a fase mais difícil da sua vida, mas o pesadelo ainda nem sequer tinha começado. Certo dia, estava ela a deitar uns corutos do milho às vacas quando viu acercar-se dela um dos filhos do fazendeiro. Da surpresa ao espanto, do espanto ao medo e do medo ao terror não decorreu mais do que um minuto.

Malaquias, assim se chamava o estupor, era dos quatro filhos do fazendeiro o mais velho e tinha fama de ser temível, porque sempre que se embebedava, e não eram poucas vezes, arranjava zaragata e se alguém se intrometia no seu caminho, não olhava a meios para atingir os seus fins. Uma ocasião, em que se viu apertado no meio de três ou quatro que se preparavam para o tosar, agarrou numa garrafa de vinho que tinha à mão, enfiou com ela na cabeça de um deles, deixando-lhe a cara a escorrer vários fios de sangue misturados com vinho. Os outros ao verem a cena fugiram, como e para onde puderam.

De nada valia Cristina gritar por ajuda porque os currais dos animais eram longe da povoação. Lutou, esbracejando e esperneando, até se lhe esgotarem as forças acabando por dar-se por vencida.

Desorientada e sem saber o que fazer, Cristina acabou por aceitar outros encontros com o malvado que prometia casar com ela. Alguns meses volvidos Cristina sentiu a barriga a crescer, sinal revelador de que viria a ser mãe ainda antes dos 17 anos.

Não tardou ela ser tema de conversa nas bocas do povo: "A Cristina espolilhou-se debaixo do Malaquias” ou, pior do que isso, “Está prenhe e nem sabe quem é o pai”. Apesar disso acalentava a esperança de que Malaquias cumpriria o prometido. Só que quando o pai de Malaquias soube dos rumores, a primeira medida que tomou foi o seu despedimento. “Grávida do meu filho? Ela deve estar grávida é dos porcos que tenho no curral.” Dizia ele.

Arrumados os poucos trapos que tinha como pertences, Cristina regressou a casa dos pais. No seu espírito confuso de adolescente cirandavam ideias difusas que ela não sabia como organizar. “E agora, que vai ser de mim?” Interrogava-se ela no negrume do quarto onde dormia juntamente com duas irmãs mais novas numa enxerga cheia de palha de centeio.

Contrariamente ao que seria de esperar, Malaquias dizia-se apaixonado por ela e dizia mesmo à boca cheia estar-se a cagar se o pai gostava ou não gostava dela, porque, custasse o que custasse, Cristina havia de ser sua mulher, sim senhor. Se isso acontecesse, Cristina pelo menos deixaria de ouvir aqueles comentários menos próprios das pessoas do povo. Mas por vezes até parece que o destino está traçado e se analisarmos bem todos os factos, chega a dar a ideia que muitos acontecimentos se interligam como elos em cadeia numa corrente infinita. E o que aí vem, terá sido para bem ou para mal de Cristina? O tempo o virá a dizer. Aguardemos, entretanto.

Nesse domingo, à semelhança da maioria dos domingos, Malaquias jogava à sueca na taberna com outros três da sua laia. Irio assistia. Gostava de também poder jogar, mas a tenra idade não lho permitia e então passava horas a observar para um dia mais tarde se tornar um bom jogador. Numa fase qualquer do jogo teve a infeliz ideia de discordar, numa jogada, com aquele que estava na iminência de ser seu cunhado. Só que nessa tarde, não bastava a sua fanfarronice, ele já tinha esvaziado seguramente meia dúzia de copos de vinho, e não gostou da opinião. Palavra puxa palavra, das palavras aos actos foi um instante. Irio agarrou num dos copos cheios de vinho que estava em cima da mesa e arremeteu-o à cara de Malaquias, que num impulso de touro enraivecido se pôs de pé com intenção de o matar se preciso fosse. Foi preciso que os outros que participavam no jogo o agarrassem para que os dois não se envolvessem em pancadaria. “Só por causa desta merda, já não caso com a tua irmã, meu grande filho da puta.” Vociferava Malaquias espumando de raiva. A verdade é que nunca mais voltou a procurar Cristina.

A vida começa numa estrada de sentido único que com o tempo se vai ramificando. O que nos faz optar por enveredarmos por um dos ramais e que define de forma indelével o rumo que a ela lhe damos, não é mais do que um grão de areia perdido na calçada. Um gesto, um sorriso, uma brisa, um copo de vinho, uma insónia, um sonho, uma queda, etc. etc.. Enfim um rol infinito de pequenos nadas podem de forma irremediável moldar o fim de cada ser.

Cristina ficou definitivamente entregue a si própria e ao seu destino, que como já vimos, um copo de vinho traçou.

Uns meses depois, numa noite invernia de Dezembro em que a chuva caía em bátegas que ameaçavam partir as telhas de barro, nasceu sã e escorreita, uma linda menina a quem Cristina quis baptizar com o nome de Maria Esperança. O instinto natural de fêmea ajudou-a a cuidar da filha esmeradamente, de tal forma que Esperança fazia inveja a qualquer criança filha de família rica, daquelas que não sabiam o que era o frio enregelado do Inverno ou o calor tórrido do Verão. Era uma menina saudável. Assim que se apanhou a gatinhar, mexia em tudo o que podia. O contacto permanente com a terra e com a porcaria imunizou-a, de alguma forma, de determinadas doenças. Se alguma apanhava, era resolvida com mezinhas, rezas e endireitas. Havia uma pessoa a escassos quatro quilómetros de distância, muito entendida nestas coisas das doenças, a quem Cristina costumava recorrer em situações mais delicadas. Era um senhor de meia-idade, muito bondoso, que curava grande parte das pessoas que o procuravam, não a troco de dinheiro, mas sim de uns ovos, de um pato, de uma galinha, de um coelho etc.. No fundo era um médico acessível.

Daquela vez, parece que foi obra do demónio, a pequena Esperança, com pouco mais de um ano de idade, estava com febre havia uma semana, daquelas que davam para assar uma sardinha na pele, e não havia mezinha nem reza que a fizesse baixar. A pequena definhava a olhos vistos. As veias tornaram-se azuladas e os ossos despiram-se de carne deixando-se fazer notar através de uma pele que passou de rosada a branca leitosa. Os olhitos encovaram-se e rodearam-se de uma auréola negra e Esperança já nem força tinha para chorar. Em desespero de causa, a mãe agarrou na filha, embrulhou-a nuns trapos e colocou-a num pequeno canastro de vimes. Muniu-se de um guarda-chuva velho pôs o canastro com a pequena à cabeça e fez-se ao caminho à procura de um milagre por parte do médico acessível. Foi num dia do fim de Janeiro. Olhando para o céu víamos um manto cinzento de uma humidade que parecia poeira. A temperatura fria adivinhava pequenos flocos de neve para breve, mas Cristina não tinha alternativa, se não fosse, a pobre filha morrer-lhe-ia dentro de pouco tempo.

A neve foi benemérita. Não foi por sua causa que Esperança morreu, porque durante todo o trajecto, apesar das ameaças, não caiu um único floco, Esperança morreu, ainda antes de o médico acessível a observar, porque o destino, ou o que quer que seja, assim o quis. Chorosa, Cristina regressou a casa com a sua filha morta dentro do canastro e, no regresso sim, a neve fustigou-a sem piedade durante todo o percurso, obrigando-a mesmo a abrigar-se de vez em quando debaixo de uns pinheiros.

Uns meses depois, e já refeita do choque emocional que a morte da filha lhe causou, Cristina conheceu um rapaz numa das ladainhas religiosas em que costumava participar. Francisco era o seu nome. Era um rapaz pacato e sossegado. Apesar da sua baixa estatura era uma força de trabalho. Os seus pais tinham uma junta de vacas que ele lidava com toda a perícia na preparação das terras para as sementeiras e mais tarde nas colheitas. Com vinte anos, era um homem feito e só lhe faltava uma mulher para constituir um lar. Cristina foi a eleita dos seus sonhos. No princípio ela ainda teve um pouco de receio que quando ele tomasse conhecimento do seu passado, a botasse ao abandono, mas tal não aconteceu. Francisco sentia até pena dela e achava que ela era a menos culpada de toda a situação. Garantia-lhe que podia ficar descansada, que não era sua intenção enganá-la e que iriam ser muito felizes. Os seus encontros eram esporádicos e a maior parte das vezes cruzavam-se na lavoura, ele de aguilhada às costas conduzindo as suas vacas, ela ceifando erva para o gado. Gostavam um do outro e ainda não tinha decorrido um ano de namoro quando decidiram juntar os trapinhos.

Provavelmente tudo seria diferente se Francisco não tivesse aparecido naquele dia no lameiro onde, debaixo de uma chuva miudinha, Cristina ceifava a habitual erva para os animais, numa altura em que já tinha sido comprado o enxoval e tudo já estava pronto para a boda. Não teria ficado cego de raiva por a ver em amena cavaqueira com Malaquias. Não soube do que falavam, o que para ele também não tinha muita importância, bastou-lhe o simples facto de os ver próximos para que a sua alma escurecesse, para que o seu coração dilacerasse. Cristina não conseguiu ler-lhe nos olhos o ódio de morte que se iria instalar no lugar mais recôndito do seu coração e que mais tarde, a mais leve brisa transformaria numa verdadeira tempestade, porque se isso fosse possível, jamais teria casado com ele.

Casaram. Não foram precisos muitos anos para que a família crescesse. Tiveram seis filhos, primeiro vieram quatro rapazes e por fim duas meninas. Os filhos habituaram-se de pequenos ao mau feitio do pai que sovava na mãe a torto e a direito sem compreenderem porquê. A vida de Cristina tornou-se num verdadeiro inferno.

Uma ocasião em que tiravam, à forquilha e garrancho, o estrume do curral das vacas, Francisco num acesso inexplicável de cólera acertou com a forquilha no braço direito de Cristina. Não tinha, por certo, a intenção de lho partir, mas foi o que acabou por acontecer. A filha mais velha, que assistiu a tudo, apressou-se a pedir ajuda aos vizinhos próximos.

Foi preciso uma fatalidade destas para que Francisco caísse em si. Cristina de braço ao peito não podia trabalhar, o que era um verdadeiro transtorno na lida da casa. As filhas já iam fazendo muita coisa, mas ainda eram pequenas. Um certo dia em que estava muito triste e pensativo, uma das filhas perguntou-lhe porque é que ele batia na mãe e ele abriu-lhe o seu coração: “A tua mãe nunca devia ter dado troco àquele canalha.”