30/04/15

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Oh, meu Camões, que há séculos dizias: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…” Como me é doloroso admitir que quando, por obrigação, tive de te ler, nada enxerguei do teu poema. Como eu o percebo hoje.

Dizia-me eu, há uns anos, o ser com a infância mais infeliz na superfície da terra. É preciso ser hipócrita para tal pretensão.

Só porque quando era criança os maridos surravam nas mulheres, ou porque, por tudo e por nada, as crianças levavam tabefes dos pais, dos avós, dos tios, dos irmãos, dos professores e dos padres?

Só porque essas mesmas crianças passavam frio e fome, e andavam quase sempre descalças, mesmo que fosse inverno?

Só porque nunca tiveram computador nem televisão, nem playstation, nem telemóvel, nem ipad, nem ifphone, mas sim bugalhos, piões, bilhardas, fisgas e outros brinquedos por si criados e construídos?

Só porque, às escondidas dos pais, se metiam na adega para beberem vinho pela torneira, matando a sede e desafiando o perigo?

Só porque, para saciarem a fome, se deitavam debaixo das cabras e, agarrados às suas tetas, por elas eram arrastados, sem se incomodarem com os arranhões na cabeça e nas costas?

Só porque assaltavam pomares, ou, com um canastro, contra a corrente do rio e com a água pelo pescoço, apanhavam peixes que fritavam e comiam mesmo sem pão?

 Só porque trepavam às árvores, ora por brincadeira, ora para deitar pinhas abaixo para acender o lume, ora, ainda, para se certificarem se os ninhos tinham ovos ou passarinhos?

Só porque chafurdavam nas poças de água que serviam para o regadio, onde brincavam com as rãs e os girinos e aprendiam a nadar?

Só porque, pelo gozo da boleia, se penduravam nas camionetas e quando se largavam caíam desamparados na estrada de macadame, esfolando mãos, joelhos e cotovelos, e depois ainda levavam umas lambadas dos pais?

Só porque iam nadar para o rio e tinham que regressar a casa completamente nus, porque os pais, à socapa, lhes iam tirar a roupa deixada a monte no meio dos milheirais?

Só porque, não raramente, chegavam a casa com a cabeça partida devido a um jogo estúpido chamado 'choca'?

Só porque à falta de televisão, computadores e outras tecnologias, passavam o tempo na rua a lutar ou a brincar uns com os outros?

Só porque tinham de comer à luz do candeeiro a petróleo e tinham como retrete um pequeno estrado com um buraco que dava para o curral dos animais, sendo depois os detritos aproveitados para estrumar as terras?

Só porque os quartos de dormir ficavam mesmo por cima dos currais dos animais, provocando o cheiro do estrume algum desconforto, mas, ao mesmo tempo, recebendo do bafo dos animais, aquecimento por entre as fendas do sobrado de madeira?

Só porque, de tenra idade, tinham que ajudar os pais e os avós na lida da casa e do campo?

Só porque eram obrigados a ir à missa, à catequese e afins?

Só porque os professores os puniam com umas palmatoadas por coisas tão simples como um erro ortográfico, ou por terem o caderno sujo os mandavam ir apanhar areão que a chuva deixava nas valetas, para o depositarem em cima do estrado e nele se ajoelharem, virados para toda a turma, durante uma ou duas horas até ficarem com os joelhos em sangue, ou ainda porque quando iam para levar uma palmatoada, retiravam a mão e os professores, enraivecidos, como touro que recebe o primeiro ferro, se serviam de tudo (régua, cana, esponja de apagar o quadro, cinto, mãos e pés) até lhe fazer saltar alguns dentes da boca?

Só porque um aluno mais corajoso da turma atirava a régua das palmatoadas para o meio dos pinheirais e, quando o professor perguntava quem foi, todos se fechavam em copas, acabando por ser toda a turma punida com duas palmatoadas?

Só porque quando se queixavam aos pais das atrocidades dos professores ainda levavam umas chapadas?

Só porque tinham brincadeiras estúpidas como atirar pedras uns aos outros?


Só porque eram capazes de andarem um dia inteiro a jogar a bola sem comerem e sem se cansarem?

Só porque subiam a árvores frondosas em busca de carrochas para lhes retirarem os cornos e depois venderem, juntamente com o “denticão” do centeio e as peles inteiras dos coelhos , e assim conseguirem o dinheiro que serviria para comprarem uma pistola de fulminantes na Santa Eufémia e que depois servia de brinquedo de estimação durante muito tempo?

Só porque se juntavam em grupos nos pinheirais e se masturbavam ao desafio para verem quem primeiro ejaculava?

Só porque, com a fisga, partiam todas as lâmpadas dos postes de iluminação da aldeia, com o objetivo de treinarem a pontaria que mais tarde viria a ser útil na caça aos pardais?

Só porque, em grupos, pela calada da noite, assaltavam as melhores cerejeiras e vindimavam os melhores cachos, apesar de borrados e sulfatados e envoltos em silvas?

Só porque, muito novos, comiam sopas de cavalo cansado e bebiam café com um cheirinho de aguardente?

Só porque, anualmente, assaltavam os castanheiros para arranjarem castanhas para o magusto de S. Martinho e faziam disso uma festa de camaradagem e cantavam e dançavam ao som de uma concertina?

Só porque os filhos eram criados pelos avós, porque o pai emigrou e a mãe tinha de fazer o trabalho dos dois?

Só porque dançavam em barracões ao som de um gira-discos ou de uma harmónica e eram levados às nuvens com o primeiro contacto com uma pessoa do sexo oposto, bastando o encostar dos corpos ou um simples encosto da cara?


Só porque aproveitavam a descasca do milho (que geralmente era á noite) para, debaixo das canas já sem espigas, darem o primeiro beijo e terem o primeiro contacto sexual?

Só porque era obrigatório ter aulas de religião e moral e, nessas aulas, os rapazes ficavam separados das raparigas?

Só porque os pais tinham necessidade de pedir lume ao vizinho, só para não ter que gastar um fósforo?

Só porque os pais não os deixavam andar na rua até muito tarde e nunca por nunca os iam buscar, estivessem onde estivessem, acontecesse o que acontecesse?

Só porque as raparigas, se queriam namorar, tinham que fazê-lo não longe da vista dos pais?

Só porque fumavam um cigarro num dia de festa familiar?

Só porque, para evitar trabalho e despesa, comia toda a família na mesma travessa?

Só porque a primeira lavagem da loiça após as refeições era na panela da vianda dos porcos para aproveitar a gordura que sobrava para os animais, ficando depois mais fácil de lavar?

Só porque, por milagre, nunca caíram abaixo da torre da igreja ao passarem num pequeno rebordo de cerca de 20 centímetro, em toda a sua volta, a cerca de 20 metros do chão, voltados de frente para a torre?

Só porque mergulhavam de um penedo de cerca de 3 metros de altura, para um charco que mais não tinha do que 1,5m de profundidade e em que o fundo eram rochas que a maior parte das vezes não se viam?

Só porque, quando iam tomar banho ao Vouga, faziam os cerca de 3Km que distam da povoação ao rio, sem as mãos no guiador da bicicleta, apesar de metade do trajeto ser uma descida acentuada de curvas e contracurvas?

Só porque, no tempo das regas, tinham que ir com os pais por volta das seis horas ma manhã, simplesmente para desligar o motor de rega quando o pai desse um assobio, para assim não se desperdiçar água nem combustível, ficando ali cerca de uma hora embrulhados num cobertor?

Só porque iam e regressavam, sempre sozinhos, a pé, da escola (mesmo na primária) quer chovesse quer fizesse sol, alguns de povoações a mais de 3Km de distância?

Só porque, muito cedo, se viciavam no tabaco, fumando à escondidas dos pais e mastigavam de seguida folhas de hortelã, cidreira e salsa para que os pais não dessem por isso através do hálito?

Só porque, aos pais, uns roubavam uma chouriça, outros um garrafão de vinho, outros uns pedaços de pão para se reunirem em amena cavaqueira?

Só porque sabiam distinguir toda a bicharada e todas as arvores e plantas: Um sapo de uma rã, um melro (não digo da cotovia, como diz a canção, porque são muito diferentes) de uma melra ou de um estorninho, um grilo de um ralo, um abrunheiro de uma ameixeira (em flor), uma couve de uma nabiça (quando germinam), um alho francês de um cebolo (quando germinam), uma macieira de uma pereira e tantas, tantas coisas , que levaria horas a escrever?

Ó meu Camões, se eu dissertasse pelos lugares mais recônditos da minha memória, quantos episódios destes eu poderia encontrar mais! E mais, parece que é só desta fase da minha vida que me lembro. Dos vinte anos para cá, parece que tudo se esfuma.

Mas não era esta a conclusão que eu queria para este desabafo. Como dizia no início, parece-me que só quarenta anos depois de ter lido o teu poema é que consegui entender onde querias chegar. É que, vendo bem as coisas, eu fui uma criança de felicidade plena.

Joel Mendes

28/04/15

Humanidade desumanizada


O tio João tem oitenta e sete anos. Aos vinte assentou praça na Marinha para dar o seu contributo na defesa da liberdade e independência da sua Pátria. Estávamos em 1945 e os senhores da guerra decidiram dar tréguas às armas que vomitavam balas havia uns anos, deixando para trás um rasto de destruição e miséria. Acabava de fazer um ano que o tio João tinha casado e estava a caminho o Pedro, filho mais velho de dois casais que a esposa lhe viria a dar. Ainda que quisesse, não podia dizer que não e, fazendo bem as contas, como iria sustentar a família? “Há males que vêm por bem” pensou. Tinha amigos a cumprir o serviço militar que lhe diziam: “Ó João, vê as coisas pelo lado positivo, a guerra já acabou e, da tropa, ainda podes trazer um pão com um pedaço de carne e uma peça de fruta que sempre dá para alimentares a tua mulher” o que o fez sentir-se mais animado. Volvidos alguns meses, ali estava ele, em plena parada, junto de umas largas centenas de outros como ele, perfilado, a olhar em frente, com o braço direito , à altura do ombro, estendido  para a frente, a mão aberta, voltada para baixo, e com a mão esquerda empunhando uma arma, gritando a plenos pulmões: “Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República…” sem disso saber o significado. Findos os quatro anos de serviço militar obrigatório, e como as condições de vida se vinham degradando cada vez mais, acabou por “meter o chico” (expressão utilizada quando um militar se propunha entrar nos quadros permanentes das forças armadas).  É claro que ele não imaginava que outra guerra ainda estava para vir e que, a essa, não podia fugir, a Guerra Colonial.
Já os quatro filhos eram nascidos quando foi destacado para um Centro de Comunicações no Lago do Niassa em Moçambique por um período de 3 anos. O Pedro, com 17 anos, já era um homenzinho e os outros também já eram crescidotes, a Joana tinha 15, o Carlos 12 e a Carolina 8. Decorria o ano de 1963 e a guerra começaria um ano depois.
Do ultramar pouco me conta. Quando o interpelei sobre isso, fixou os olhos num ponto qualquer do teto, como se ali estivesse a resposta e da sua boca apenas saíram pequenas frases e algumas incompletas: “Tive sorte… alguns ficaram lá…” “Ainda bem que lá fui, se não como iria alimentar as cinco bocas lá em casa?” Afinal, embora não fosse muito, sempre caía algum dinheirito extra. De regresso a casa, ficaria sempre a padecer da perna direita por causa de um tiro perdido.
Saiu da Marinha em 1979 com o posto de Sargento Ajudante com um misto de satisfação e um pouco de desilusão. Confessou-me: “Fui sempre o primeiro nos cursos que frequentei e, no fim, outros mais novos acabaram por ser promovidos antes de mim.” E continuou: “Sabe quando é que a Marinha deixou de ser o que era? Quando vieram os Draga-Minas.” “Como assim?” Perguntei bisbilhoteiro. “Foi nessa altura que aspirantezecos com os ‘cueiros atrás da porta’ começaram a tratar cabos de trinta e quarenta anos por tu, a partir daí…” Eis um pormenor deveras curioso.
Antes de para aqui vir estava num lar de idosos. Os filhos tinham as suas vidas e a esposa falecera havia uns anos. Apesar de algo monótona, a vida no lar proporcionava-lhe alguns momentos de convívio com outras pessoas como ele, e depois, esporadicamente,  lá ia recebendo uma visita fugaz dos filhos.
Um dia destes, quando se dirigia para um banquito, apoiado na sua bengala, para aproveitar uma réstia de sol, tropeçou, caiu desamparado e já não conseguiu levantar-se sozinho. Chamaram uma ambulância e levaram-no às urgências de um hospital público. Ao cabo de algumas horas regressou sem que lhe fosse diagnosticada qualquer fratura. Mas todos os dias ele se queixava de dores insuportáveis. Os responsáveis do lar diziam que as dores eram resultado da queda e que, não tendo nada partido, com o tempo iriam passar. Uma semana depois, um dos filhos achou estranho o pai continuar a queixar-se tanto e levou-o ao Hospital X. Exame para aqui, exame para acolá e veio o diagnóstico: fratura do úmero do braço direito e fratura do colo do fémur da perna esquerda.
Foi transferido ontem para o departamento de cirurgia, para ser operado daqui a três dias. Até lá, vai ficar aqui a meu lado nesta posição incómoda, deitado de costas, com os olhos presos no teto e a poder mexer apenas o braço esquerdo, pedindo ajuda a toda a hora para as necessidades mais básicas (Sinto incómodo na perna direita. Dê-me um copo de água. Fiz cócó.) Ontem foi precisamente quando eu fui operado ao joelho esquerdo e quando regressei do recobro já ele era meu camarada de caserna. Apercebo-me que ele se esforça ao máximo por não incomodar seja quem for. Tem uma respiração ofegante, o rosto um pouco pálido, sofre de diabetes, tem uma tensão arterial muito baixa (9/4) e um pulso muito alto (112). Fala baixo e com bastante dificuldade. Diz obrigado a tudo e pede desculpa por algum inconveniente.
Esta manhã acordei com a auxiliar a dizer, num tom de enfado e aborrecimento: “Chi, eu nem quero acreditar, o que é que aconteceu aqui? Arrancou-me o acesso… está todo empapado em sangue.” Enquanto isto dizia ia virando costas para chamar a enfermeira. O tio João, numa voz quase inaudível, e sempre naquela posição incómoda lá ia dizendo: “Desculpem, eu estava a sonhar…” regressa a auxiliar com a enfermeira e ora uma ora outra vão perguntando: “Então o senhor não sentia mal estar? Não sabia chamar?” e ele repetia: “Desculpem, eu estava a sonhar…” e foi neste ‘ram ram’ que lhe mudaram a roupa da cama e do corpo verdadeiramente ensopada em sangue.
Algum tempo depois  atendeu uma chamada no telemóvel de uma das filhas. Perguntava a filha: “Então pai, está tudo bem?” e ele, numa voz fraca respondeu: “Não, olha…” e a filha interrompeu: “E já tomaste o pequeno almoço?” e ele continuou: “Eu hoje destrui… “ e a filha interrompeu de novo: “Pronto, eu amanhã passo por aí para te fazer uma visita, até amanhã.” E ele respondeu: “Até amanhã, filha.”
Apraz-me citar o meu escritor favorito: “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.José Saramago
Amanhã, quando a filha vier visitar o pai, já eu estarei em casa a convalescer da minha operação ao joelho. Desejo a maior sorte do mundo ao SENHOR JOÃO.

09/04/15

No fim...


Não sou ninguém.
Sou tão somente um espetro,
não de um homem,
mas de um vazio.
(se isso é possível…)
Sou uma sombra invisível,
porque eu próprio
sou invisível.
Sou um fantasma
do meu infortúnio
vagueando sem destino
à procura de mim mesmo

No fim,
Talvez nem espetro,
nem sombra,
Nem fantasma serei…
Não serei nada.

Joel Mendes