13/08/15

Silêncio na casa de Deus II




Há uns tempos atrás, publiquei um documentário intitulado “Silêncio na casa de Deus”, em que a BBC denunciava a violação e tortura de milhares de crianças, (muitas delas surdas), com o conhecimento da camada mais alta da hierarquia da igreja (João Paulo II, Bento XVI etc.) que, em vez de denunciarem e excomungarem os agressores, não só não mexeram uma palha, (ou melhor, mexeram,  para colocarem os agressores  em  lugares de privilégio) como criaram um fundo de milhões de dólares, para silenciarem as vítimas dos casos conhecidos.


Na verdade, a igreja e, especialmente, os considerados de “Vossa Excelência Reverendíssima” para cima, são peritos nesta questão do silêncio. E porquê? Porque sabem que, como diz ditado, “Da discussão nasce a luz” e a luz é o que mais impressão pode fazer a quem vive, e quer que os outros vivam, mergulhados nas trevas.


Raros são os casos em que essas toupeiras surgem das entranhas da escuridão para dar palpites, e quando isso acontece, é porque sentiram um ténue fio de luz invadir-lhes as grossas e pesadas pálpebras, como foi no caso das obras de José Saramago “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e “Caim”.


Esta semana, todos nós assistimos ao caso do padre de Canelas nas notícias e ficou bem patente a perseguição cerrada que lhe está a ser feita pela cúpula da igreja católica. Ele não teve qualquer problema em vir a terreiro explicar o que está na base dessa perseguição, chamando mentiroso ao bispo do Porto por ter manipulado as informações por si enviadas numa carta e convidando-o a tornar público o conteúdo dessa carta em que, segundo diz, pedia explicações no caso de um padre acusado de abusos sexuais. Mais, denuncia a promiscuidade da cúria diocesana com o poder autárquico. E repare-se no paradoxo da questão, perante o pedido de explicação sobre estas acusações por parte da RTP, o que é que faz a diocese? Não faz nada. Silêncio. Um silêncio ensurdecedor. E para quê? Para que nos bastidores possa mexer os cordelinhos e fazer o mesmo de sempre: colocar os abusadores a salvo da opinião pública e, se possível, dar-lhes um papel de relevo, e silenciar, difamar e desacreditar os delatores. Senão veja-se o que está a acontecer, o padre de Canelas surge na opinião pública como se estivesse envolvido em casos de abuso sexual e o caso do padre de quem ele pediu explicações, entretanto, já foi arquivado. É sempre assim, a igreja em vez de denunciar e punir os vermes que a empestam, arranja todos os estratagemas para que não sejam julgados e persegue quem os denuncia.


Assim me vou afastando do que foi um dos pilares da minha educação, porque me dá vómitos pensar que, de cada vez que acendo uma vela na igreja estarei, com certeza, a alimentar toda esta podridão.


Felizmente, no seio de tanta escumalha, ainda se vão encontrando alguns, muito poucos, padres de Canelas. Para ele os meus parabéns pela coragem.




26/07/15

passagem


rasguei os gritos
da dor
aflitos
e desabrochei
em flor
 
de raiva ao mundo
te cantei
jucundo
o teu amor
bradei
 
subi sentindo
o calvário
desavindo
com o meu
fadário
 
e tu longe
chorando
monge
por mim
rezando
 
tingiu-me o sol
e a geada
de arrebol
sou menos
que nada
 
do que enxergo
é miragem
carrego
a ilusão nesta
viagem


Joel Mendes

12/07/15

Duas simples quadras


Quis por num só verso
o teu dente de leão
e vi abrir-se o universo
num cintilante clarão.


Tão perto e tão distante
e a sorrir-te de contente
errante num mar brilhante
era uma estrela cadente.

Joel Mendes

11/07/15

Resignação


De todo o meu tesouro
abdiquei,
a toda a prata e ouro
renunciei.

Do trono um resquício de luz
alado,
do cetro um raio fino reluz
cansado.

Uma lamúria triste ressoa
sufocada
do túmulo onde jaz a coroa
despojada.

O elmo, o escudo e a espada
ressequidos
repousam inermes na parada
esquecidos.

A criança que fui, agora
implora
pelos tempos de outrora.
Deplora…

Joel Mendes

09/07/15

Sina


Hoje adormeci abraçado
à noite escura numa cama
de gelo e acordei suado
num sudário de lama.
 

Sonhei que evolei ao céu
de nuvens negras pejado
e o universo toldou-se de breu
talhando enfim o meu fado.
 

Joel Mendes

23/05/15

Uma questão de fé

Há coisas que servem de base à nossa condição como seres humanos, sobre as quais nunca nos damos ao cuidado refletir. Aceitamo-las, na generalidade dos casos, como uma espécie de um testemunho que nos é passado pelos antecedentes e o qual temos o dever de passar aos que nos procedem sem nos perguntarmos qual a sua razão de ser. É exemplo disto a “fé”.
 
Esta palavra tão pequenina e de significado tão amplo que nos é incutida desde pequenos, vai ficar gravada na nossa consciência até ao fim dos nossos dias e vai ser um dos grandes pilares da nossa orientação.
Quando nos apercebemos que essa fé assenta em alicerces de lama, corremos o risco de sentirmos um arrepio na coluna, como que a desfalecer, ou de ficarmos com a sensação de que tudo o que construímos, de um momento para o outro, se desmoronou como um castelo de cartas. Pelo menos, foi isso que aconteceu comigo.
É costume ouvirmos muitas frases com essa palavrinha, como, “A fé é que nos salva” e é curioso que nunca perguntamos, “De quê, ou, de quem?” Outro exemplo,  “É preciso ter fé.” E não perguntamos, “Em quê, ou, em quem?” E não o fazemos porque, automaticamente, a nossa consciência dá essas respostas.
Consultando um simples dicionário, teremos como significados da palavra “fé” o seguinte:
  1. Crença absoluta na existência ou veracidade de certo facto; convicção íntima
  2. Compromisso de fidelidade à palavra dada; lealdade 
  3. Confiança absoluta (em algo ou em alguém); crédito 
  4. RELIGIÃO adesão aos dogmas de uma doutrina religiosa considerada revelada 
  5. RELIGIÃO (catolicismo) primeira das virtudes teologais, graças à qual se acredita nas verdades reveladas por Deus 
  6. Qualquer crença religiosa; religião 
  7. Comprovação de um facto; prova 
Como fui educado na religião cristã, na qual cumpri todos os sacramentos, a fé a que me quero referir é a que vem nos números 1, 3, 4, 5, e 6.

Depois de ter visto  o documentário “MEA MÁXIMA CULPA: SILÊNCIO NA CASA DO SENHOR”, eu que já tinha alguma aversão à grande maioria dos padres, fiquei a saber que afinal não são só os padres, toda a hierarquia da igreja não passa de podridão. E numa época em que as tecnologias podem fazer com que toda a informação chegue ao conhecimento das pessoas, acho estranho que, em vez de divulgarem e divulgarmos, até à exaustão, imagens de polícias a agredir adeptos de futebol, informação tão importante como esta, não seja divulgada, pelo menos, uma ou duas vezes, em especial nos canais públicos, porque, esta sim, é nojenta e deveria envergonhar qualquer católico.


Trata-se de um documentário que fala dos casos de pedofilia cometidos por padres católicos em todo o mundo, durante décadas, sempre com o conhecimento das mais altas esferas do vaticano, Papas inclusive. Nele são referidos todos os nomes dos visados, desde o insuspeitável João Paulo II, ao afável Bento XVI  e outra gentalha como essa, bem como o nome das pessoas (na altura crianças) violentadas por monstros da igreja sem que esta tenha mexido uma palha para, pelo menos, minimizar os estragos, muito pelo contrário, em vez de excomungar esses biltres, criou um fundo de vários milhões de dólares para comprar o silêncio das vítimas.


De futuro, far-me-á muita confusão ver multidões a ver e a ouvir qualquer papa na praça do considerado estado do vaticano, porque a julgar pelos últimos, que ainda assim, dizem que foram dos melhores, estão na presença de sujeitos que em vez de serem venerados, adorados ou idolatrados, deveriam ser julgados por crimes contra a humanidade. Creio mesmo que dessa praça já só lhe resta o nome.

Cativeiro


Arrasto-me sozinho entre a multidão,
de grilhetas nos pés a algemas nas mãos,
de olhos vendados e sem saber quem sou,
sem saber d’onde venho nem p’ra onde vou.

Almejo um ermo fleumático para abrigo,
a solidão e o esquecimento como amigos,
ser eu, de mim mesmo, o carcereiro
duma cela onde me farei prisioneiro.

E assim, isolado e acorrentado,
de tudo e de todos ostracizado,
gritarei até fazer do meu clamor

um sussurro p’lo universo espalhado,
como suplício, a algum deus apiedado
p’ra que me oiça e afaste este torpor.

Joel Mendes

19/05/15

Desencontro

Rezo em silêncio as minhas orações,...
penitenciando-me dos meus pecados,
das minhas desventuras.
E perco-me no meio das multidões,
de seres como eu, desencontrados
das suas venturas.



Descerro a cortina que me envolve,
para ver p’ra’lém de mim,
p’ra’lém do além,
e tudo o que vislumbro se dissolve
como um sonho que chegou ao fim
com desdém.


E eu que pensei que o vazio era vazio
de esplendor, de beleza, de felicidade,
de coração...
É o porto de abrigo do meu navio
que deu à costa co’a tempestade
em dia não.


Joel Mendes

30/04/15

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Oh, meu Camões, que há séculos dizias: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…” Como me é doloroso admitir que quando, por obrigação, tive de te ler, nada enxerguei do teu poema. Como eu o percebo hoje.

Dizia-me eu, há uns anos, o ser com a infância mais infeliz na superfície da terra. É preciso ser hipócrita para tal pretensão.

Só porque quando era criança os maridos surravam nas mulheres, ou porque, por tudo e por nada, as crianças levavam tabefes dos pais, dos avós, dos tios, dos irmãos, dos professores e dos padres?

Só porque essas mesmas crianças passavam frio e fome, e andavam quase sempre descalças, mesmo que fosse inverno?

Só porque nunca tiveram computador nem televisão, nem playstation, nem telemóvel, nem ipad, nem ifphone, mas sim bugalhos, piões, bilhardas, fisgas e outros brinquedos por si criados e construídos?

Só porque, às escondidas dos pais, se metiam na adega para beberem vinho pela torneira, matando a sede e desafiando o perigo?

Só porque, para saciarem a fome, se deitavam debaixo das cabras e, agarrados às suas tetas, por elas eram arrastados, sem se incomodarem com os arranhões na cabeça e nas costas?

Só porque assaltavam pomares, ou, com um canastro, contra a corrente do rio e com a água pelo pescoço, apanhavam peixes que fritavam e comiam mesmo sem pão?

 Só porque trepavam às árvores, ora por brincadeira, ora para deitar pinhas abaixo para acender o lume, ora, ainda, para se certificarem se os ninhos tinham ovos ou passarinhos?

Só porque chafurdavam nas poças de água que serviam para o regadio, onde brincavam com as rãs e os girinos e aprendiam a nadar?

Só porque, pelo gozo da boleia, se penduravam nas camionetas e quando se largavam caíam desamparados na estrada de macadame, esfolando mãos, joelhos e cotovelos, e depois ainda levavam umas lambadas dos pais?

Só porque iam nadar para o rio e tinham que regressar a casa completamente nus, porque os pais, à socapa, lhes iam tirar a roupa deixada a monte no meio dos milheirais?

Só porque, não raramente, chegavam a casa com a cabeça partida devido a um jogo estúpido chamado 'choca'?

Só porque à falta de televisão, computadores e outras tecnologias, passavam o tempo na rua a lutar ou a brincar uns com os outros?

Só porque tinham de comer à luz do candeeiro a petróleo e tinham como retrete um pequeno estrado com um buraco que dava para o curral dos animais, sendo depois os detritos aproveitados para estrumar as terras?

Só porque os quartos de dormir ficavam mesmo por cima dos currais dos animais, provocando o cheiro do estrume algum desconforto, mas, ao mesmo tempo, recebendo do bafo dos animais, aquecimento por entre as fendas do sobrado de madeira?

Só porque, de tenra idade, tinham que ajudar os pais e os avós na lida da casa e do campo?

Só porque eram obrigados a ir à missa, à catequese e afins?

Só porque os professores os puniam com umas palmatoadas por coisas tão simples como um erro ortográfico, ou por terem o caderno sujo os mandavam ir apanhar areão que a chuva deixava nas valetas, para o depositarem em cima do estrado e nele se ajoelharem, virados para toda a turma, durante uma ou duas horas até ficarem com os joelhos em sangue, ou ainda porque quando iam para levar uma palmatoada, retiravam a mão e os professores, enraivecidos, como touro que recebe o primeiro ferro, se serviam de tudo (régua, cana, esponja de apagar o quadro, cinto, mãos e pés) até lhe fazer saltar alguns dentes da boca?

Só porque um aluno mais corajoso da turma atirava a régua das palmatoadas para o meio dos pinheirais e, quando o professor perguntava quem foi, todos se fechavam em copas, acabando por ser toda a turma punida com duas palmatoadas?

Só porque quando se queixavam aos pais das atrocidades dos professores ainda levavam umas chapadas?

Só porque tinham brincadeiras estúpidas como atirar pedras uns aos outros?


Só porque eram capazes de andarem um dia inteiro a jogar a bola sem comerem e sem se cansarem?

Só porque subiam a árvores frondosas em busca de carrochas para lhes retirarem os cornos e depois venderem, juntamente com o “denticão” do centeio e as peles inteiras dos coelhos , e assim conseguirem o dinheiro que serviria para comprarem uma pistola de fulminantes na Santa Eufémia e que depois servia de brinquedo de estimação durante muito tempo?

Só porque se juntavam em grupos nos pinheirais e se masturbavam ao desafio para verem quem primeiro ejaculava?

Só porque, com a fisga, partiam todas as lâmpadas dos postes de iluminação da aldeia, com o objetivo de treinarem a pontaria que mais tarde viria a ser útil na caça aos pardais?

Só porque, em grupos, pela calada da noite, assaltavam as melhores cerejeiras e vindimavam os melhores cachos, apesar de borrados e sulfatados e envoltos em silvas?

Só porque, muito novos, comiam sopas de cavalo cansado e bebiam café com um cheirinho de aguardente?

Só porque, anualmente, assaltavam os castanheiros para arranjarem castanhas para o magusto de S. Martinho e faziam disso uma festa de camaradagem e cantavam e dançavam ao som de uma concertina?

Só porque os filhos eram criados pelos avós, porque o pai emigrou e a mãe tinha de fazer o trabalho dos dois?

Só porque dançavam em barracões ao som de um gira-discos ou de uma harmónica e eram levados às nuvens com o primeiro contacto com uma pessoa do sexo oposto, bastando o encostar dos corpos ou um simples encosto da cara?


Só porque aproveitavam a descasca do milho (que geralmente era á noite) para, debaixo das canas já sem espigas, darem o primeiro beijo e terem o primeiro contacto sexual?

Só porque era obrigatório ter aulas de religião e moral e, nessas aulas, os rapazes ficavam separados das raparigas?

Só porque os pais tinham necessidade de pedir lume ao vizinho, só para não ter que gastar um fósforo?

Só porque os pais não os deixavam andar na rua até muito tarde e nunca por nunca os iam buscar, estivessem onde estivessem, acontecesse o que acontecesse?

Só porque as raparigas, se queriam namorar, tinham que fazê-lo não longe da vista dos pais?

Só porque fumavam um cigarro num dia de festa familiar?

Só porque, para evitar trabalho e despesa, comia toda a família na mesma travessa?

Só porque a primeira lavagem da loiça após as refeições era na panela da vianda dos porcos para aproveitar a gordura que sobrava para os animais, ficando depois mais fácil de lavar?

Só porque, por milagre, nunca caíram abaixo da torre da igreja ao passarem num pequeno rebordo de cerca de 20 centímetro, em toda a sua volta, a cerca de 20 metros do chão, voltados de frente para a torre?

Só porque mergulhavam de um penedo de cerca de 3 metros de altura, para um charco que mais não tinha do que 1,5m de profundidade e em que o fundo eram rochas que a maior parte das vezes não se viam?

Só porque, quando iam tomar banho ao Vouga, faziam os cerca de 3Km que distam da povoação ao rio, sem as mãos no guiador da bicicleta, apesar de metade do trajeto ser uma descida acentuada de curvas e contracurvas?

Só porque, no tempo das regas, tinham que ir com os pais por volta das seis horas ma manhã, simplesmente para desligar o motor de rega quando o pai desse um assobio, para assim não se desperdiçar água nem combustível, ficando ali cerca de uma hora embrulhados num cobertor?

Só porque iam e regressavam, sempre sozinhos, a pé, da escola (mesmo na primária) quer chovesse quer fizesse sol, alguns de povoações a mais de 3Km de distância?

Só porque, muito cedo, se viciavam no tabaco, fumando à escondidas dos pais e mastigavam de seguida folhas de hortelã, cidreira e salsa para que os pais não dessem por isso através do hálito?

Só porque, aos pais, uns roubavam uma chouriça, outros um garrafão de vinho, outros uns pedaços de pão para se reunirem em amena cavaqueira?

Só porque sabiam distinguir toda a bicharada e todas as arvores e plantas: Um sapo de uma rã, um melro (não digo da cotovia, como diz a canção, porque são muito diferentes) de uma melra ou de um estorninho, um grilo de um ralo, um abrunheiro de uma ameixeira (em flor), uma couve de uma nabiça (quando germinam), um alho francês de um cebolo (quando germinam), uma macieira de uma pereira e tantas, tantas coisas , que levaria horas a escrever?

Ó meu Camões, se eu dissertasse pelos lugares mais recônditos da minha memória, quantos episódios destes eu poderia encontrar mais! E mais, parece que é só desta fase da minha vida que me lembro. Dos vinte anos para cá, parece que tudo se esfuma.

Mas não era esta a conclusão que eu queria para este desabafo. Como dizia no início, parece-me que só quarenta anos depois de ter lido o teu poema é que consegui entender onde querias chegar. É que, vendo bem as coisas, eu fui uma criança de felicidade plena.

Joel Mendes

28/04/15

Humanidade desumanizada


O tio João tem oitenta e sete anos. Aos vinte assentou praça na Marinha para dar o seu contributo na defesa da liberdade e independência da sua Pátria. Estávamos em 1945 e os senhores da guerra decidiram dar tréguas às armas que vomitavam balas havia uns anos, deixando para trás um rasto de destruição e miséria. Acabava de fazer um ano que o tio João tinha casado e estava a caminho o Pedro, filho mais velho de dois casais que a esposa lhe viria a dar. Ainda que quisesse, não podia dizer que não e, fazendo bem as contas, como iria sustentar a família? “Há males que vêm por bem” pensou. Tinha amigos a cumprir o serviço militar que lhe diziam: “Ó João, vê as coisas pelo lado positivo, a guerra já acabou e, da tropa, ainda podes trazer um pão com um pedaço de carne e uma peça de fruta que sempre dá para alimentares a tua mulher” o que o fez sentir-se mais animado. Volvidos alguns meses, ali estava ele, em plena parada, junto de umas largas centenas de outros como ele, perfilado, a olhar em frente, com o braço direito , à altura do ombro, estendido  para a frente, a mão aberta, voltada para baixo, e com a mão esquerda empunhando uma arma, gritando a plenos pulmões: “Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República…” sem disso saber o significado. Findos os quatro anos de serviço militar obrigatório, e como as condições de vida se vinham degradando cada vez mais, acabou por “meter o chico” (expressão utilizada quando um militar se propunha entrar nos quadros permanentes das forças armadas).  É claro que ele não imaginava que outra guerra ainda estava para vir e que, a essa, não podia fugir, a Guerra Colonial.
Já os quatro filhos eram nascidos quando foi destacado para um Centro de Comunicações no Lago do Niassa em Moçambique por um período de 3 anos. O Pedro, com 17 anos, já era um homenzinho e os outros também já eram crescidotes, a Joana tinha 15, o Carlos 12 e a Carolina 8. Decorria o ano de 1963 e a guerra começaria um ano depois.
Do ultramar pouco me conta. Quando o interpelei sobre isso, fixou os olhos num ponto qualquer do teto, como se ali estivesse a resposta e da sua boca apenas saíram pequenas frases e algumas incompletas: “Tive sorte… alguns ficaram lá…” “Ainda bem que lá fui, se não como iria alimentar as cinco bocas lá em casa?” Afinal, embora não fosse muito, sempre caía algum dinheirito extra. De regresso a casa, ficaria sempre a padecer da perna direita por causa de um tiro perdido.
Saiu da Marinha em 1979 com o posto de Sargento Ajudante com um misto de satisfação e um pouco de desilusão. Confessou-me: “Fui sempre o primeiro nos cursos que frequentei e, no fim, outros mais novos acabaram por ser promovidos antes de mim.” E continuou: “Sabe quando é que a Marinha deixou de ser o que era? Quando vieram os Draga-Minas.” “Como assim?” Perguntei bisbilhoteiro. “Foi nessa altura que aspirantezecos com os ‘cueiros atrás da porta’ começaram a tratar cabos de trinta e quarenta anos por tu, a partir daí…” Eis um pormenor deveras curioso.
Antes de para aqui vir estava num lar de idosos. Os filhos tinham as suas vidas e a esposa falecera havia uns anos. Apesar de algo monótona, a vida no lar proporcionava-lhe alguns momentos de convívio com outras pessoas como ele, e depois, esporadicamente,  lá ia recebendo uma visita fugaz dos filhos.
Um dia destes, quando se dirigia para um banquito, apoiado na sua bengala, para aproveitar uma réstia de sol, tropeçou, caiu desamparado e já não conseguiu levantar-se sozinho. Chamaram uma ambulância e levaram-no às urgências de um hospital público. Ao cabo de algumas horas regressou sem que lhe fosse diagnosticada qualquer fratura. Mas todos os dias ele se queixava de dores insuportáveis. Os responsáveis do lar diziam que as dores eram resultado da queda e que, não tendo nada partido, com o tempo iriam passar. Uma semana depois, um dos filhos achou estranho o pai continuar a queixar-se tanto e levou-o ao Hospital X. Exame para aqui, exame para acolá e veio o diagnóstico: fratura do úmero do braço direito e fratura do colo do fémur da perna esquerda.
Foi transferido ontem para o departamento de cirurgia, para ser operado daqui a três dias. Até lá, vai ficar aqui a meu lado nesta posição incómoda, deitado de costas, com os olhos presos no teto e a poder mexer apenas o braço esquerdo, pedindo ajuda a toda a hora para as necessidades mais básicas (Sinto incómodo na perna direita. Dê-me um copo de água. Fiz cócó.) Ontem foi precisamente quando eu fui operado ao joelho esquerdo e quando regressei do recobro já ele era meu camarada de caserna. Apercebo-me que ele se esforça ao máximo por não incomodar seja quem for. Tem uma respiração ofegante, o rosto um pouco pálido, sofre de diabetes, tem uma tensão arterial muito baixa (9/4) e um pulso muito alto (112). Fala baixo e com bastante dificuldade. Diz obrigado a tudo e pede desculpa por algum inconveniente.
Esta manhã acordei com a auxiliar a dizer, num tom de enfado e aborrecimento: “Chi, eu nem quero acreditar, o que é que aconteceu aqui? Arrancou-me o acesso… está todo empapado em sangue.” Enquanto isto dizia ia virando costas para chamar a enfermeira. O tio João, numa voz quase inaudível, e sempre naquela posição incómoda lá ia dizendo: “Desculpem, eu estava a sonhar…” regressa a auxiliar com a enfermeira e ora uma ora outra vão perguntando: “Então o senhor não sentia mal estar? Não sabia chamar?” e ele repetia: “Desculpem, eu estava a sonhar…” e foi neste ‘ram ram’ que lhe mudaram a roupa da cama e do corpo verdadeiramente ensopada em sangue.
Algum tempo depois  atendeu uma chamada no telemóvel de uma das filhas. Perguntava a filha: “Então pai, está tudo bem?” e ele, numa voz fraca respondeu: “Não, olha…” e a filha interrompeu: “E já tomaste o pequeno almoço?” e ele continuou: “Eu hoje destrui… “ e a filha interrompeu de novo: “Pronto, eu amanhã passo por aí para te fazer uma visita, até amanhã.” E ele respondeu: “Até amanhã, filha.”
Apraz-me citar o meu escritor favorito: “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.José Saramago
Amanhã, quando a filha vier visitar o pai, já eu estarei em casa a convalescer da minha operação ao joelho. Desejo a maior sorte do mundo ao SENHOR JOÃO.

09/04/15

No fim...


Não sou ninguém.
Sou tão somente um espetro,
não de um homem,
mas de um vazio.
(se isso é possível…)
Sou uma sombra invisível,
porque eu próprio
sou invisível.
Sou um fantasma
do meu infortúnio
vagueando sem destino
à procura de mim mesmo

No fim,
Talvez nem espetro,
nem sombra,
Nem fantasma serei…
Não serei nada.

Joel Mendes

18/03/15

Castelo de areia


Construí um castelo de areia,
na praia, longe do mar
para não desmoronar.
Veio o sol
e esfarelou-lhe as paredes,
veio o vento
e varreu os escombros em direção ao mar.


Joel Mendes

16/03/15

"Pensar é estar doente dos olhos"

Trai-nos o pensamento.
Sem ele seríamos felizes
como as ervas e as pedras....

E seríamos serenos
como um rio rumo à foz,
e alegres como as aves na primavera.
Teríamos a calma de um planeta
rodando sobre si mesmo.
Olharíamos para tudo
com todos os sentidos,
e não só com a visão.
E morreríamos em paz,
agradecendo, sem saber a quem,
o mais ínfimo momento.

Anónimo