09/10/09

O candeeiro a petróleo

Flash 3

Vive com a avó. Muito embora tenha pai e mãe, não sabe quem são. Aliás, ele não tem a mínima noção do que é ter um pai ou uma mãe. Por certo a avó falou-lhe ocasionalmente neles, mas o seu espírito de criança, nesta altura, estará demasiado ocupado com o jogo do bugalho ou do pião, para prestar atenção a assuntos de tão pouca importância. A mãe, apesar de viver com ele sob o mesmo tecto, não passa de uma desconhecida deficiente mental, de quem ele, em conjunto com outros miúdos da sua idade fazem troça, obrigando-a a fugir na sua frente desviando-se do arremesso de pedras e outros objectos. O pai, zarpou para longe a bordo de um navio mercante. Na verdade, ele não sabe bem o que aconteceu, só sabe que os outros miúdos têm pai e mãe e ele não. Faustino, é um miúdo de 5 anos de olhar arisco e vivo, onde se esconde uma certa neblina de mistério. Aparenta ser saudável, apesar do corpito sujo, dos pés descalços, do ranho que lhe escorre do nariz e das feridas um pouco por todo o corpo provocadas por constantes quedas. O irmão, um pouco mais velho, é o seu inseparável companheiro, com ele brinca, com ele dorme, com ele se envolve em brigas fraternas, das quais sai sempre uma união mais forte. Ele é o seu confidente, o amigo, o pai, a mãe, no fundo é tudo.

Apesar de tudo sente-se feliz. Brinca quase todo o dia; constrói os seus próprios comboios com latas de conserva vazias, com a ajuda de um pau, faz rodar na sua frente um arco ou um pneu de uma bicicleta velha de altura superior à sua, joga à cabra-cega com os ovos tirados dos ninhos que descobre nas suas incursões pelas serras e pelos campos, joga ao bugalho e ao pião com os miúdos da sua idade e, sobretudo, deleita-se a correr atrás da deficiente mental a atirar-lhe pedras, enquanto ela põe as mãos na cabeça protegendo-se o melhor que pode.

Os tempos não são de abundância e por isso a sua alimentação não é propriamente a de um príncipe; a sopa de feijão e os feijões com couves, são, ainda assim, os alimentos de maior sustento, acompanhados com o pão de milho e centeio, cozido no forno de lenha mais ou menos de 15 em 15 dias. Por vezes umas sopas-de-cavalo-cansado revigoram-lhe o espírito e a alma.

A avó educa-o como pode e sabe. Não obstante a sua idade, solicita-o para todo o tipo de trabalho. Diz ela: “De pequenino é que se torce o pepino.”

Estamos no Inverno e hoje é um dia que ainda não parou de trovejar. A chuva tem caído ininterruptamente, por vezes em bátegas diluviais. São 8 ou 9 da noite e faz um escuro de breu. Chove desalmadamente e os animais, ovelhas, cabras e porcos ainda não foram “acomodados.” A avó agarra numa paveia de folhagem verde e encaminha-se para os currais no piso inferior da casa. Faustino segue-a descalço, de candeeiro a petróleo na mão. Não sei se tropeçou em alguma pedra perdida no caminho, o que é facto é que acaba de se desequilibrar, deixando cair o candeeiro e partindo a chaminé. O ribombar dos trovões e o gemido da água da chuva a embater na calçada, abafam o som do tabefe que a avó acaba de desferir na cara do garoto. “Não tens cuidado nenhum… vai buscar fósforos e uma vela à cozinha.” Diz-lhe ela em tom irritado. Ele obedece sem chorar e sem responder. Acabaram agora mesmo de pôr a comida aos animais e regressam à cozinha, ela à frente, ele atrás, onde o fogo da lareira os espera para secarem as roupas e aquecerem os corpos.