19/06/10

Que horas são?

Àquela distância, de mais ou menos trinta metros, pareceu-lhe que ela não tinha mais do que vinte anos. Ele viu que ela gesticulava e, pelos seus gestos, parecia-lhe que ela queria saber as horas, pois apontava com o indicador direito para o pulso esquerdo, mas instantes depois, quando ele já se encontrava mais próximo dela, reparou que o mover dos seus lábios não correspondia à pergunta: “Que horas são?”, porque o tempo que ela demorava a falar era mais curto do que o necessário para a dita pergunta. Ao cruzar-se com ela, reparou que ela tinha um cabelo castanho claro empastado, de boneca mal estimada, em cima de uma cara macerada de rugas, que aparentava pertencer a uma mulher de sessenta anos, pendurada num corpo a que ele não dava mais de vinte. Numa das mãos, tinha um bloco de notas sujo e um cigarro, na outra, uma garrafa de um líquido qualquer. E dizia ela quase em desespero: “Relógio, relógio.” “O quê?” Perguntou ele. “Que horas são? Foda-se…” Insistiu ela, zangada. “São horas de comprares um relógio, minha, foda-se…” Respondeu ele em tom irónico, ao mesmo tempo que lhe mostrava o seu. “Desculpe, que horas são, por favor?” Retorquiu ela, arrependida. “São dez horas.” Volveu ele, amavelmente. “Muito obrigada.” Arrematou ela, ficando a olhá-lo nas costas, enquanto ele seguia o seu caminho

18/06/10

Saramago

Assistia eu ao Jornal da Tarde na RTP1 quando apareceu como notícia de última hora a morte de José Saramago. Momentaneamente, senti um calafrio percorrer-me o corpo, sem que eu saiba explicar porquê, foi como se me tivessem dado a notícia de que tinha morrido um familiar muito próximo. E, curioso, foi o facto de o meu mano ter tido a mesma reacção quando o informei por telefone.


Fizeram-se ouvir de imediato dezenas de reacções, das quais retive duas, uma de um dos mais promissores senhores das letras em Portugal, Gonçalo Tavares, e que dizia: “Hoje é um dia trágico, é um dia triste”. E outra do nosso presidente da República, mais ou menos com o seguinte conteúdo: “José Saramago é um escritor de projecção mundial e será sempre uma figura de referência da cultura nacional. Em nome dos Portugueses e em meu nome pessoal, presto homenagem à memória de José Saramago, cuja vasta obra literária deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras.” Considero estas duas declarações verdadeiramente antagónicas. A primeira é sentida e emocionada, a segunda, hipócrita. É esta a grande diferença entre um político (especialmente este) e um homem das artes. A declaração de Cavaco Silva fez-me recuar um pouco no tempo e levou-me até ao ano de 1993, altura em que um qualquer seu sub-secretário de estado, dito da cultura, riscou o nome de José Saramago da candidatura a um prémio literário europeu, a pretexto da não representatividade num país predominantemente católico, sob a sua supervisão e consentimento como chefe do governo. Isto por causa de uma obra intitulada “O evangelho segundo Jesus Cristo”, que o escritor tinha editado em 1991. Estamos, portanto, perante a mesma pessoa mas com duas caras. O porquê talvez só o próprio o possa explicar.

Como disse Gonçalo Tavares, até certo ponto é um dia trágico e triste, mas não esqueçamos do legado que Saramago nos deixa que, ao imergirmos nele, rapidamente nos esquecemos da sua morte. Aliás não há ninguém como ele para nos ajudar a compreender que a morte está permanentemente ao nosso lado, mas que só nos mata se nós quisermos. Acredito que a ele, tal como aconteceu a um certo violoncelista, nunca matará.

Sou um admirador entusiástico dos seus livros, dos quais já li a maior parte. Para além de gostar da forma como escreve, em que cada livro é uma enorme metáfora, partilho de grande parte das suas ideias. Gostei de todos os livros que li, mas destacaria três: “O memorial do convento”, pela história toda, mas especialmente, pela dupla de personagens Baltasar e Blimunda, e dos “Ensaios sobre a cegueira e lucidez”, reveladores da verdadeira crise social em que vivemos e da forma como dela nos alheamos.

Sei que pediste para não colocarem lápides e muito menos inscrições no lugar onde te depositarem, mas apetece-me dizer-te: “Obrigado por existires.”

15/06/10

Playlist

Sou mais ouvinte da Antena 1 do que da TSF, mas no meu entender, estas são sem dúvida as melhores estações de rádio nacionais. Influenciado pelo meu mano e pela sua Playlist no seu Blog (jotamantinando.blogspot.com) senti necessidade de fazer também a minha. Na verdade, eu e ele, partilhamos dos mesmos gostos musicais. A ordem porque aparecem não tem significado, pois a primeira poderia ser a última e vice-versa. Ei-la:

Estrela da tarde – Carlos do Carmo
Povo que lavas no rio – Amália Rodrigues
Ó gente da minha terra – Mariza
Terça-feira – Sérgio Godinho
Tunnel of love – Dire Straits
As quatro estações – Vivaldi
Another brick in the wall – Pink Floyd
Message in a bottle – Sting
Por este rio acima – Fausto
O lado errado da noite – Jorge Palma

Este exercício de reflexão foi deveras interessante, na medida em que me obrigou a recuar no tempo e a imergir nos cantos mais recônditos da minha memória. Foi fantástico. Aconselho.

A condescendência ou falta dela

Decorria o jogo entre as equipas da Argélia e da Eslovénia quando ouvi um comentário que achei interessante e que me leva a escrever estas linhas.

Um jogador da Argélia já estava "amarelado" quando, por uma jogada à margem das leis do jogo, lhe foi mostrado um segundo cartão amarelo e seguidamente o consequente cartão vermelho. Não tardaram os habituais comentários dos "entendidos" na matéria: "Na verdade o jogador tocou a bola com a mão, mas, tendo em conta que ele já ia em desequilíbrio e que não houve intenção deliberada de ludibriar o árbitro, acho que este podia condescender um pouco e não o punir com um segundo amarelo, sabendo que isso lhe custaria a expulsão do jogo. No entanto, o árbitro cumpriu com o que dizem as leis e contra isso não há nada a apontar."

Quase em simultâneo, ouvi uma notícia na rádio sobre um condenado à morte num dos estados dos Estados Unidos, em que esse condenado pediu ao juíz que preferia que a vida lhe fosse tirada, não pela tradicional injecção letal, mas sim por um pelotão de fuzilamento. O juíz em causa, depois de considerar os prós e os contras, anuiu com as suas pretensões. Também aqui surgiram de imediato as opiniões dos "entendidos" na matéria", no caso, a de um padre qualquer do país em causa, que ao ser interpelado sobre a questão respondeu: "Tirar a vida a um ser humano, quer seja por meio de uma injecção letal, quer seja por qualquer outro meio, é sempre um acto condenável, quer ética, quer religiosamente, mas uma morte provocada por um pelotão de fuzilamento é violência em cima de violência."

Confesso que se no primeiro caso não compreendi a condescendência, no segundo, não compreendi a ausência dela. E isto leva-me a uma pergunta que, se calhar, ninguém consegue dar-me resposta, (sim, porque as que existem, não me convencem) e que é a seguinte: "Afinal o que é a ética?" Diz-nos a filosofia: "É a disciplina que procura determinar a finalidade da vida humana e os meios de a alcançar, preconizando juízos de valor que permitem distinguir entre o bem e o mal." Um outro conceito estipulado é: "Conjunto de princípios morais por que um indivíduo rege a sua conduta pessoal ou profissional; código deontológico." O grande problema, é que quem interpreta o significado destas palavras são precisamente os seres humanos, os mesmos que julgam ou que deixam de julgar, que condenam ou deixam de condenar.

Todas as sociedades são complexas, mas a sociedade humana, dada a sua característica específica de ser dotada de raciocínio, como dizem os entendidos, é ainda mais complexa. Devemos ser condescendentes? Devemos. Devemos ser tolerantes? Devemos. Mas sobretudo, e antes de tudo o resto, devemos respeitar, e isso é algo que em tempo de condescendência, já quase não existe. Porque o respeito é como a felicidade, é feito de pequenos nadas e se existe a felicidade profunda e a felicidade superficial, também existe o respeito profundo e o respeito superficial e o tempo é de felicidade e respeito superficiais.

Se um condenado, tem como vontade última morrer por um pelotão de fuzilamento, não sejamos hipócritas a perdermo-nos em retóricas sobre éticas e religiões e tenhamos respeito pela sua vontade; quem sabe se isso não lhe dará alguma felicidade...

10/06/10

A Primavera


Flash 7

Se lhe perguntarem qual a estação do ano preferida, ele ficará reticente, sem saber o que deve responder, se a primavera se o verão. Com qualquer uma delas, ano após ano, vai enriquecendo o seu espírito com fragmentos soltos, indeléveis, e na sua cabeça os arrumará, em compartimentos estanques, para deles se servir, em excelente estado de conservação, um dia mais tarde, quando for adulto. A ausência do pai, emigrado há muitos anos em França, não é para ele motivo de tristeza, nem lhe provoca qualquer sentimento estranho; de muito pequeno se habituou a viver sem ele e, estranho será, quando daqui a uns anos, o pai vier a ocupar o devido lugar dentro da família. Agora, a sua principal preocupação, se assim se lhe pode chamar, é a escola, a ESCOLA DA VIDA.

Estamos em finais de Abril e há já muito tempo que as andorinhas cortam o ar em voos acrobáticos, silvando de alegria, como que a dizer a quem as vê e ouve: "A vida é uma breve passagem, aproveitemo-la." Desabrocham flores por todo o lado; nas beiras dos caminhos, nas pedras dos muros, nas árvores, nas terras que, não tarda, irão ser lavradas... e delas exala um aroma que enche a alma de quem o respira.

É a Primavera que lhe ensina muitas coisas que o vão preparar para a vida, a qual vai ser a sua verdadeira madrinha, ou, mais do que isso, a sua verdadeira mãe. Tem muitos amigos, mais ou menos da sua idade, com quem gosta de conviver e brincar, mas gosta de fazer as suas descobertas sozinho, metendo-se por vezes em aventuras arriscadas, que em determinadas situações, podem mesmo custar-lhe a vida, sem que ele tenha alguém por perto a quem pedir ajuda.

João, o miúdo desta história, tem dez anos e prepara-se para um dia de encontro com a natureza. Já tem no bolso de trás a fisga que ele próprio construiu. Muniu-se de uma navalha, cortou uma mimosa em forma de ípsilon, que aparou ao seu gosto, de uma câmara-de-ar velha de bicicleta cortou duas tiras de borracha com uma tesoura, de uns sapatos velhos retirou-lhe a língua e de um saco do adubo extraiu os cordões. Num dos bolsos da frente leva uma dúzia de pequenas pedras. Vejo-o atravessar a estrada de macadame em direcção ao "moitedo" e sei que não tardará a aparecer por aí com um pardal preso num cordel a imitar um verdadeiro caçador. É um miúdo curioso e que gosta de aventuras. Quantas vezes roubou ele os ovos dos ninhos para os estrelar, ou para com eles jogar à cabra-cega? E quantas vezes esperou ele que as aves pais acabassem de criar os seus filhotes para que, quando estivessem prestes a sair do ninho, lhes deitasse a mão e lhes torcesse o pescoço, para os comer depois de fritos num gole de azeite?

Não obstante a sua tenra idade, sabe distinguir, à nascença, uma cenoura de uma qualquer erva daninha, uma batateira de uma faveira, ou um nabo de uma couve. Diferencia, pelo aroma, uma rosa normal de uma rosa de alexandria. Mas no que ele é mesmo entendido, é a identificar as aves pelo chilreio; desde o majengro ao tentilhão, sem esquecer o papa-figos, o melro, a rola, o gaio ou a irritante milheiriça. Mas distingue-os não só pelo canto como também pelas suas cores e tamanhos, e mesmo pelos seus ninhos. Uma ocasião, vi-o muito calado nas suas observações e perguntei-lhe: "Então, há algum problema?" ao que ele me respondeu: "Estou a ver se distingo uma carriça macho de uma carriça fêmea." E eu sei que ele o conseguiu, tal como o conseguiu com muitas outras aves, apesar de neste caso a tarefa ser um pouco mais difícil.