20/03/10

O(s) roubo(s)

Sob o título "Furto", o artigo 203º do código penal português, no seu ponto 1, diz o seguinte: "Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.". Qualquer pessoa, à primeira vista, não teria dúvida nenhuma na interpretação deste artigo, mas se analisarmos bem, está ali uma palavrinha que pode fazer com que as coisas não sejam bem assim, que é a palavra ilegítima. Ilegítimo significa: que vai contra a lei, que não está conforme o direito, que vai contra as regras. Sendo assim, poderemos questionar-nos: mas então será legítimo uma pessoa roubar uma maçã para comer se estiver a morrer de fome, e não tiver outra forma de a conseguir? A resposta é, obviamente, não, porque na lei não existe nada escrito sobre esta questão. Mas existe sobre outras questões, como por exemplo: bilhetes dos transportes públicos, taxa de rádio e televisão na factura da EDP, despesas de manutenção cobradas pelos bancos, etc., etc.. Isto é, existe o roubo legal e o roubo ilegal. Quando uma empresa de transportes nos cobra 50 cêntimos por um pedaço de cartão que tem a validade de um ano, e que finda essa validade, ainda que o cartão esteja em condições, teremos que desembolsar mais 50 cêntimos para adquirir um novo cartão, estamos perante um roubo legal. Quando uma empresa como a EDP, que tem milhões de lucro por ano, nos cobra uma taxa de rádio e de televisão mensal, ainda que seja de uma casa onde só temos um motor de rega, estamos a falar de um desvio legal. Quando um banco, que todos os anos vê aumentada a sua percentagem de lucros, nos cobra uma taxa de despesas de manutenção, porque a miséria que ganhamos não cumpre o saldo médio que eles pretendem - se todos ganhassem tanto como eles, o problema não se punha - estamos visivelmente numa situação de subtracção legal de coisa móvel alheia. Mas quando um desgraçado assalta um supermercado para tirar meia dúzia de maçãs porque a fome é negra, toda a gente vê que isto é ilegal, ilegítimo e outras coisas começadas por "i".

Estamos em crise, é verdade, mas a verdadeira crise está na apatia com que assistimos todos, displicentemente, ao assalto aos nossos bolsos por parte de oportunistas sem escrúpulos protegidos por um estado, ainda menos escrupuloso.

O Inverno

Flash 6

É, sem dúvida, a pior estação do ano. Os dias são curtos e cinzentos, as noites são longas e frias e as casas tornam-se verdadeiros frigoríficos. Durante o Verão e o Outono, as pessoas, com a fábula de La Fontaine em mente, precavêem-se o mais possível para evitar males maiores. Para o gado, secam-se e arrumam-se canas, corutos e erva, e para fazer face ao frio, os putos, especialmente, desdobram-se em esforços para conseguir uma boa quantidade de lenha. Consigo vê-los como se agora estivesse a acontecer. Vão a caminho da Sta. Eufêmea, os três em cima da carroça conduzida por uma burra, o Manuel, dono do animal, e dois irmãos, o Fernando e o Daniel. Este é mais novo dois anos do que os outros dois que têm 14 anos. Levam consigo vários sacos que, no regresso, virão cheios de pinhas. São miúdos dotados de uma audácia e de uma destreza física fantásticas. Trepam aos pinheiros com a agilidade de um macaco e, já lá em cima, servindo-se da navalha que levam no bolso, cortam um pequeno ramo, do qual se servem para fazerem soltar as pinhas. Em pouco tempo têm o corpo um pouco esfarrapado, mas também têm uma quantidade de pinhas, suficientes para encherem dois ou três sacos. Não levam mais que três horas a encherem os 14 sacos a que se propunham. Cumprida a tarefa, vem o momento mais esperado: prende-se a burra a um pinheiro, arranjam-se algumas ervas para a entreter e ala dar um mergulho na “fonte da malguinha”, uma poça de água tépida escondida nos rochedos a escassos metros dali, onde já outros miúdos se banham numa alegria indescritível. Acabado o banho, secam os corpos numa breve exposição ao sol e regressam a casa verdadeiramente contentes.

Os irmãos Fernando e Daniel, não têm matas onde possam ir buscar a lenha de que precisam para o Inverno e então servem-se das matas dos outros. Felizmente que ninguém se opõe que apanhem as pinhas nem que se esgalhem os ramos fundeiros dos pinheiros. Mas como é que eles vão conseguir esgalhar esses pinheiros? Pregam duas varas com cerca de 3 metros cada uma, formando uma só vara com 6 metros aproximadamente e, na ponta, colocam uma roçadoura. A principal dificuldade está em pôr a vara na vertical, pois, devido ao seu comprimento, muitas vezes parte, antes que isso aconteça; mas uma vez o consigam, basta fazerem um pequeno corte com a roçadoura na parte do ramo mais próxima do tronco e deslocar depois a vara para a extremidade, puxando-o com um pequeno esticão. Ouve-se um pequeno estrondo, resultante do partir do ramo que, um segundo depois, cai a seus pés como por milagre. Repetem o gesto vezes sem conta, até conseguirem encher a carroça que a burra do Manuel irá buscar lá para o fim do dia.