17/10/14

E se todos quase morressemos...




Como não posso fazer nada, entrego-me à ociosidade. Como e bebo, durmo, leio, a custo, levo o cão à rua para fazer as necessidades (já que até brincar com ele me é difícil), escrevo, muito embora o engenho seja fraco, e vejo televisão.

Foi precisamente enquanto via um filme, em um dos muitos canais que a televisão nos disponibiliza, que me ficou no ouvido uma frase que, de alguma forma, me intrigou e me fez refletir. Um dos personagens, um homem de setenta anos de idade, teve um acidente de automóvel e ficou entre a vida e a morte. Após uma paragem cardíaca, acabou por salvar-se, segundo a sua teoria, por milagre. A certa altura do filme, e por motivos que não importa referir, dirigiu estas palavras a uma filha de trinta e três anos que sempre se mostrou bastante arrogante e até um pouco rude para com os pais, especialmente para com a mãe: “Acho que toda a gente deveria quase morrer. Ganhamos outra perspetiva, percebes?” 

Rapidamente me acudiu à memória o Raúl Solnado, que depois de ter ultrapassado, um período penoso da sua vida, devido a problemas de saúde, nos deixou a célebre frase: “Façam o favor de ser felizes."

Lembrei-me da premonitória carta aos amigos, de Gabriel Garcia Marquez que, persentindo que o seu tempo de vida minguava, de entre tantas coisas bonitas, disse o seguinte:
“Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo Amor.
Aos Homens, provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima de uma montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.
Aprendi que um Homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.”

Pensei no vício, por exemplo, do tabaco e do álcool, em que muitas pessoas só o abandonam quando um médico os adverte de que se não inverterem caminho, cairão numa vala de onde será difícil saírem.

Veio-me ao espírito a complacência dos avós para com os netos, tão ausente quando eram pais.

É sintomático, o quase morrer ou a aproximação ao morrer, faz o ser humano assumir uma postura diferente perante si e tudo o que o rodeia, tornando-o mais tolerante, mais compreensivo, mais solidário, mais humano. Mas, então, surge a inevitável pergunta: “Porquê?”

Claro que não darei resposta alguma, não sinto legitimidade para tal, porque nem uma marioneta de trapos chego a ser, mas concordo em absoluto com o personagem do filme, se toda a gente quase morresse, teríamos um mundo melhor.

10/10/14

Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.




Costuma dizer-se: “Dos fracos não reza a história.” Mas também se diz: “Mais vale um cobarde vivo do que um herói morto.” Ouvimos ainda dizer: “Só se vive uma vez.” Prefiro, apesar de tudo a frase: “Devemos agir segundo o que a consciência nos diz.”


Estou na marinha há 32 anos e, um dia destes, enquanto lia a ordem de serviço de pessoal, senti-me verdadeiramente triste. Foi uma daquelas tristezas que nos causam arrepios na coluna vertebral e que nos transportam para outro estádio do nosso ser e nos fazem compreender melhor a hipocrisia da besta humana.

Foram promovidos, por escolha, ao posto imediato, dois camaradas. Estes dois camaradas ultrapassaram um outro mais antigo do que eles. É evidente que os dois promovidos teriam melhores avaliações do que o preterido, mas seriam eles melhores do que ele? Os camaradas em causa, têm de Marinha, mais ano menos ano, o mesmo tempo que eu, e conheço-os muito bem, como pessoas, como profissionais e como militares, e considero ter sido cometida uma grande injustiça. Falo fundamentalmente de questões profissionais. Falo de comparação de saberes. Falo de saber ou não saber. Falo de que o que sabe fica e o que não sabe avança. Conheço-os há muitos anos e sei que é mesmo assim. E como isto dói… mas quem se importa com isso? No fundo, os que foram promovidos, o que é que lucram? Ganham mais uns trocos, são vistos pelos outros como mais capazes, porque passam a ostentar mais uma risca nas passadeiras. E o que não foi promovido, o que é que perde? Não, não são uns trocos, nem a risca da passadeira, perde um pouco de si, perde a sua dignidade, perde a sua identidade, porque passou grande parte da sua vida a dignificar a Marinha e a classe que representa, tendo sido, diga-se de verdade, um dos melhores, e o que é que recebeu como prémio? Ser preterido por camaradas, quiçá, com metade do seu saber.


Mas volto à questão inicial, o que nos diz a nossa consciência? Em um caso diz: consegui os meus objetivos, apesar de ser limitado, alcancei um estatuto digno de registo, onde outros, sendo melhores do que eu, não conseguiram chegar; em outro caso diz: de nada serve ser melhor do que os outros se não tivermos em conta outros fatores, só ao alcance dos mais limitados, mas mais habilidosos.


Outra pergunta a colocar é: E daqui para diante, vale a pena continuar? No primeiro caso, a resposta é, obviamente, sim. No segundo caso, a resposta é, obviamente, não.


No final, com ou sem saber, esta pequena roda, pendurada no cosmos, continua a girar de forma harmoniosa, alheada da singularidade destes pequenos nadas a que insistimos querer dar tanta importância. Esqueçamos os heróis, os cobardes, os vivos, os mortos, os fracos, a história e a consciência. Façamos por ser felizes.

07/10/14

O super mário



Sabes, marinho, se eu tivesse que te comparar a alguém, comparava-te ao fernandito, lembras-te dele? Aquele pobre diabo da AMI que só entrou na política porque queria ser presidente, e que dizia, liminarmente, que se o não fosse não ocuparia qualquer outro cargo na vida política portuguesa, mas que, no final, quando viu que o tacho se tinha gorado, e lhe sugeriram a hipótese de poder vir a ser presidente da assembleia da república, não hesitou em aceitar e foi protagonista daquela cena miserável a que todos tivemos ocasião de assistir na televisão?


Não obstante a tua desfaçatez, reveladora de um oportunismo despudorado para com um povo assustadoramente ignorante, reconheço que a tua astúcia pode ser útil a Portugal, afinal, havia alguém que dizia: “Mais vale errar do que não fazer.” Pode ser que a tua dialética ardilosa venha a agitar os ventos de corrupção e compadrio que correm nos corredores do poder; não há nada como dividir para reinar, e nisso tu és um ás.

Sabes porque é que coisas como a tua eleição para o parlamento europeu acontecem em Portugal? E porque é que, malgrado o teu partido ter poucos dias de vida, talvez venhas a alcançar um resultado extraordinário nas legislativas de 2015? Porque este povo que te acarinha, e que só sobrevive graças a novelas, futebol, contos de fadas e ilusões, é o mesmo que acarinha essa corja, que em 40 anos mais não fez do que depená-lo, é o mesmo que em séculos de existência só dá sinal de si quando está no último suspiro. Como diria o nosso querido Eça: “O povo paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam (…) e padres que rezam contra ele. (…) paga tudo, paga para tudo. E em recompensa, dão-lhe uma farsa.” Ou como um dos seus personagens, o Conde de Abranhos, que dizia: “Eu que sou governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo, mas como a falta de educação o mantém na imbecilidade e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito…”


Aguardo, serenamente, as cenas dos próximos episódios.

Breve Sopro



Passeio, perdido, num tempo arrancado à força às entranhas do universo. Bafejou-me um breve sopro nesta encruzilhada de trajetos, também ela efémera. Com ele me embriago de felicidade, de tristeza, de raiva, de amor, de ódio, de rancor, de frio, de calor, de fome, de sonho, de ilusão, de saudade, de paixão, de compaixão, de dor, de solidão, de ausência, de presença, de dúvida, de incerteza. Esta fugaz brisa, que é um pouco mais que nada, e que, só por isso, faz de mim esta coisa primorosa chamada ser humano, emana de mim, por todos os meus poros, esfarelando-se em todas as direções e, não obstante a sua insignificância, interfere, sub-repticiamente, nas demais aragens que vogam pelas galáxias e, todas juntas, acabarão por se autodestruir.

Felizmente, no fim, todos os elementos encontrarão a sua harmonia.