07/12/13

Reencontro



Eu não sou mais do que um sonho espavorido no silêncio sepulcral das minhas sombras, onde, fugindo de mim, me encontro, em êxtase, nas masmorras do meu infortúnio.


Não sou mais do que uma desmesurada massa informe e disforme, composta, fundamentalmente, de substâncias químicas a colidirem umas com as outras, convidando-me, incessantemente, à junção das demais ínfimas e significantes partículas que compõem o Universo. 

Anónimo

13/10/13

Nada sou



Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei-de ser, sendo nada, o que serei. 


Fora disto, que é nada, sob o azul
Do largo céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor,


Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada, e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.


Fernando Pessoa

02/06/13

O chico-esperto



Nove e um quarto de um sábado qualquer e o pingo doce já está apinhado de gente. O meu espanto aumenta quando reparo que a maior parte dos peixes estão com uma promoção de 50%. Grande azar, logo hoje que vinha apenas para comprar 4 ou 5 carapaus para o almoço. Retiro a senha nº 86 e acabam de chamar o nº 65. Que fazer, desisto ou espero? São 3 pessoas a atender, pode ser que seja rápido.


Passa meia hora e tudo corre bem. Acabam de chamar a pessoa com o nº 79. Mas, oh diabo, há duas pessoas a reclamar a senha 79. A funcionária examina-as e chega à conclusão que uma delas não pertence ao lote das senhas correntes, mas sim ao lote anterior. Atrapalhado, o indivíduo com a senha falsa, diz que a tirou de um monte de senhas soltas como as outras pessoas. A funcionária diz que não pode atendê-lo porque a senha não é válida. O falsário diz que não vai dali embora sem o peixe, uma vez que já está ali quase há uma hora. A funcionária para evitar aborrecimentos condescende e pede ao senhor para não voltar a tomar uma atitude destas.


Calmamente, dirijo-me à funcionária e digo: “Este senhor não é atendido com esta senha.” O esperto olha-me de soslaio e ronca: “Quem é você para dizer que eu não sou atendido?” O polícia, ali de serviço, passa pelo local para assinalar a sua presença. “Chame o responsável pela secção, por favor.” Peço à funcionária. Dois minutos depois chega a responsável pela peixaria.


Inteira-se do assunto e pede bom senso. Repito o que dissera antes: “Este senhor não é atendido com esta senha.” A responsável sentencia: “O senhor, se quiser levar peixe, terá que retirar outra senha.” O finório amarrota a senha do lote anterior e sai porta fora a balbuciar impropérios. Espero mais 15 minutos e peço 5 carapaus.
 

06/04/13

O filho pródigo


Das parábolas de cristo, a do filho pródigo é a única de que me lembro, talvez por a ter ouvido durante tantos anos próximo do fim da quaresma. Confesso que nunca percebi onde é que cristo queria chegar com a mensagem, pois tratando-se de uma narração alegórica, encerraria nas entrelinhas uma missiva mais profunda do que a que supostamente deixava transparecer. Convinha, pois, que fosse o próprio cristo a esclarecê-la, para não suscitar dúbias interpretações.
Essa parábola bem podia aplicar-se ao ressurgimento de josé socrates na vida pública nacional, (coincidência ou não, no fim da quaresma) apenas com umas ligeiras diferenças: ele não precisou de pedir os haveres ao pai, (diga-se povo português) uma vez que tinha a faca e o queijo na mão para se apoderar de tudo o que quisesse, e também não precisou de ir chafurdar junto dos porcos à procura de alfarrobas, uma vez que o que roubou lhe permitia viver à grande e à francesa durante muitos anos, tão-pouco precisou de se redimir dos seus pecados, bastando um estalar de dedos para que o povo português o recebesse de braços abertos, premiando-o com a entrevista mais vista de sempre na televisão portuguesa e com o programa mais visto nesse dia. Irmãos mais velhos deste filho pródigo a reclamar que afinal o crime compensa e que mais vale esbanjar dinheiro em meretrizes e proxenetismo, do que trabalhar honesta e arduamente, não se ouviu falar de nenhum, porque ainda que os houvesse facilmente seriam silenciados.
Bertrand Russell
 "O problema com o mundo é que os estúpidos são excessivamente confiantes, e os inteligentes são cheios de dúvidas."
                                                                            


28/01/13

O nosso compartimento


Trinta e oito anos passaram depois de nos termos libertado da mordaça. O 25 de abril de 74 prometia-nos um futuro de liberdade, prosperidade, fraternidade e muitas outras coisas terminadas em ade. Passámos a eleger livremente aqueles que iriam ser os nossos representantes de 4 em 4 anos, e às vezes sem ser necessário tanto tempo. Em 1983, ainda não eram volvidos 10 anos, já não tínhamos dinheiro para mandar cantar um cego, o estado estava falido e houve necessidade de recorrermos a empréstimos exteriores e de pedir ao nosso miserável povo que compreendesse e colaborasse nessa emergência nacional. Daí para a frente outras eleições houve, outros foram os escolhidos para nos representarem e governarem. Desta vez a emergência nacional levou mais tempo a chegar. Foram cerca de 19 anos, isto é, o dobro do tempo da primeira, mas também duplamente perigosa e duplamente catastrófica. Aos poucos vamos compreendendo que as vacinas começam a ser ineficazes para aguentar o moribundo com vida. É uma questão de tempo.
Não será tempo de nos interrogarmos do que poderá estar por detrás de toda esta doença? Tudo bem, todos nós sabemos que temos uma classe política abaixo de medíocre, que o cavaco não é melhor do que o soares, que o guterres não é melhor do que o cavaco, que o durão não é melhor do que o guterres, e assim por diante. Sabemos que são todos iguais. É visível que temos aqui um grande problema. Mas será só este o problema? E será este o maior de todos os males? E nós como povo e como nação, não seremos um problema grave ou ainda mais grave?
A manifestação (15 Setembro de 2012) onde vi envolvida uma grande parte do nosso povo, (aproximadamente 1 milhão de pessoas?) deixou-me contente e triste. Contente por verificar que há tanta gente descontente com a situação em que nos encontramos. Triste por pressentir que a maioria das pessoas se manifestava em nome individual e não em nome coletivo.
Somos um povo compartimentado, de compartimentos estanques, sempre receosos que qualquer um dos outros compartimentos contamine o nosso.
Recordo-me do 25 de abril de 74. Dos cravos nas espingardas dos militares e destes fundidos na multidão que, em júbilo, os exaltava como heróis e libertadores. Como nós mudamos consoante os nossos interesses! Hoje os mesmos militares já não são heróis, são uma súcia de malandros, que só consomem e não produzem, e que, não obstante, são tratados com deferência relativamente aos outros cidadãos.
Todos sabemos o estado a que chegou o nosso sistema educativo. Depois de 20 e tal anos dedicados ao ensino, há professores a ficarem sem trabalho sem saberem como nem porquê. Estes professores vieram para a rua manifestar-se contra este ataque grosseiro ao sistema educativo, e nós, assistimos impávidos e serenos do nosso compartimento, a este desígnio que é dos professores e não nacional.
Mais simples do que isto. As escadas rolantes da estação de comboios não funcionavam havia uns dias. O elevador tresandava mais a urina do que uma casa de banho que não é limpa há oito dias. As pessoas com mais dificuldade de movimentos, subiam ofegantes os vinte e cinco degraus de escadas praguejando e injuriando o desconhecido, mas nem as pessoas se dirigiam ao funcionário da CP a comunicar a anomalia, nem o dito funcionário se dignificava a verificar se tudo estava em ordem; não fossem os compartimentos misturar-se…
Mas pior do que tudo isto, é quando nos pomos a discutir, sem sabermos o que dizemos, mas sempre com o objetivo de defendermos o nosso compartimento e sem nos importarmos se defecamos nos compartimentos dos outros.
Poderíamos ficar horas sem fim a dissertar sobre os compartimentos de cada um, mas basta…
Os políticos que nos governam têm na verdade muita culpa do estado a que chegámos, mas nós, povo, não merecemos muito mais, porque somos ignorantes, egoístas e hipócritas, e como nação somos uma aberração.