07/12/09

Cristina

Flash 5

Dos cinco irmãos, Cristina era a mais velha. Era uma menina esbelta com uma desenvoltura fora do comum. Escondia os seus 16 anos por detrás de um corpo perfeito de mulher onde se salientavam dois seios empinados capazes de fazer qualquer homem suspirar. O cabelo preto, de caracóis largos, escorria-lhe quase até ao meio das costas e a pele da cara e das mãos denunciava que tanto as altas temperaturas do Verão, como o frio cortante do Inverno daquela região da Beira interior, não eram para ela um obstáculo.

Habituada a sacrifícios desde pequenina, trabalhando por vezes de sol-a-sol, Cristina agradeceu a Deus, como uma dádiva caída dos céus, a oferta de um trabalho de mulher-a-dias por parte de um abastado fazendeiro que morava longe da povoação, a troco de comida, roupa lavada e uns míseros tostões. Os pais, por sua vez, também estavam gratos porque, se por um lado, beneficiando do dinheiro que ela iria ganhar, poderiam comer mercearia e bacalhau pelo menos uma vez no ano, por outro, era menos uma boca que tinham para alimentar. É verdade que lhes iria faltar a maior força de trabalho mas, tendo em conta que os outros filhos estavam a crescer, rápido apareceria quem a substituísse. Irío, por exemplo, que era dos irmãos o que se seguia na pirâmide das idades, já estava com 14 anos e, praticamente, já tomava conta da lavoura sozinho.

De início as coisas não foram fáceis, porque sabendo nós que o trabalho não iria ser nenhuma afronta para Cristina, haveria que contar com a integração na nova família, aquela a quem a partir dessa altura, teria de justificar vários porquês, como o de a loiça não estar lavada, de a casa não estar arrumada, de o almoço não estar pronto, de o gado não ter comida, etc., etc.. Foi mais de um mês de contidos suspiros, de pesarosos soluços e de choros reprimidos, mas, enfim, por imposição ou necessidade, o ser humano tem esta característica fantástica, a tudo é capaz de se adaptar.

Trabalhava naquela casa havia cerca de dois meses e, supunha ela, tinha passado a fase mais difícil da sua vida, mas o pesadelo ainda nem sequer tinha começado. Certo dia, estava ela a deitar uns corutos do milho às vacas quando viu acercar-se dela um dos filhos do fazendeiro. Da surpresa ao espanto, do espanto ao medo e do medo ao terror não decorreu mais do que um minuto.

Malaquias, assim se chamava o estupor, era dos quatro filhos do fazendeiro o mais velho e tinha fama de ser temível, porque sempre que se embebedava, e não eram poucas vezes, arranjava zaragata e se alguém se intrometia no seu caminho, não olhava a meios para atingir os seus fins. Uma ocasião, em que se viu apertado no meio de três ou quatro que se preparavam para o tosar, agarrou numa garrafa de vinho que tinha à mão, enfiou com ela na cabeça de um deles, deixando-lhe a cara a escorrer vários fios de sangue misturados com vinho. Os outros ao verem a cena fugiram, como e para onde puderam.

De nada valia Cristina gritar por ajuda porque os currais dos animais eram longe da povoação. Lutou, esbracejando e esperneando, até se lhe esgotarem as forças acabando por dar-se por vencida.

Desorientada e sem saber o que fazer, Cristina acabou por aceitar outros encontros com o malvado que prometia casar com ela. Alguns meses volvidos Cristina sentiu a barriga a crescer, sinal revelador de que viria a ser mãe ainda antes dos 17 anos.

Não tardou ela ser tema de conversa nas bocas do povo: "A Cristina espolilhou-se debaixo do Malaquias” ou, pior do que isso, “Está prenhe e nem sabe quem é o pai”. Apesar disso acalentava a esperança de que Malaquias cumpriria o prometido. Só que quando o pai de Malaquias soube dos rumores, a primeira medida que tomou foi o seu despedimento. “Grávida do meu filho? Ela deve estar grávida é dos porcos que tenho no curral.” Dizia ele.

Arrumados os poucos trapos que tinha como pertences, Cristina regressou a casa dos pais. No seu espírito confuso de adolescente cirandavam ideias difusas que ela não sabia como organizar. “E agora, que vai ser de mim?” Interrogava-se ela no negrume do quarto onde dormia juntamente com duas irmãs mais novas numa enxerga cheia de palha de centeio.

Contrariamente ao que seria de esperar, Malaquias dizia-se apaixonado por ela e dizia mesmo à boca cheia estar-se a cagar se o pai gostava ou não gostava dela, porque, custasse o que custasse, Cristina havia de ser sua mulher, sim senhor. Se isso acontecesse, Cristina pelo menos deixaria de ouvir aqueles comentários menos próprios das pessoas do povo. Mas por vezes até parece que o destino está traçado e se analisarmos bem todos os factos, chega a dar a ideia que muitos acontecimentos se interligam como elos em cadeia numa corrente infinita. E o que aí vem, terá sido para bem ou para mal de Cristina? O tempo o virá a dizer. Aguardemos, entretanto.

Nesse domingo, à semelhança da maioria dos domingos, Malaquias jogava à sueca na taberna com outros três da sua laia. Irio assistia. Gostava de também poder jogar, mas a tenra idade não lho permitia e então passava horas a observar para um dia mais tarde se tornar um bom jogador. Numa fase qualquer do jogo teve a infeliz ideia de discordar, numa jogada, com aquele que estava na iminência de ser seu cunhado. Só que nessa tarde, não bastava a sua fanfarronice, ele já tinha esvaziado seguramente meia dúzia de copos de vinho, e não gostou da opinião. Palavra puxa palavra, das palavras aos actos foi um instante. Irio agarrou num dos copos cheios de vinho que estava em cima da mesa e arremeteu-o à cara de Malaquias, que num impulso de touro enraivecido se pôs de pé com intenção de o matar se preciso fosse. Foi preciso que os outros que participavam no jogo o agarrassem para que os dois não se envolvessem em pancadaria. “Só por causa desta merda, já não caso com a tua irmã, meu grande filho da puta.” Vociferava Malaquias espumando de raiva. A verdade é que nunca mais voltou a procurar Cristina.

A vida começa numa estrada de sentido único que com o tempo se vai ramificando. O que nos faz optar por enveredarmos por um dos ramais e que define de forma indelével o rumo que a ela lhe damos, não é mais do que um grão de areia perdido na calçada. Um gesto, um sorriso, uma brisa, um copo de vinho, uma insónia, um sonho, uma queda, etc. etc.. Enfim um rol infinito de pequenos nadas podem de forma irremediável moldar o fim de cada ser.

Cristina ficou definitivamente entregue a si própria e ao seu destino, que como já vimos, um copo de vinho traçou.

Uns meses depois, numa noite invernia de Dezembro em que a chuva caía em bátegas que ameaçavam partir as telhas de barro, nasceu sã e escorreita, uma linda menina a quem Cristina quis baptizar com o nome de Maria Esperança. O instinto natural de fêmea ajudou-a a cuidar da filha esmeradamente, de tal forma que Esperança fazia inveja a qualquer criança filha de família rica, daquelas que não sabiam o que era o frio enregelado do Inverno ou o calor tórrido do Verão. Era uma menina saudável. Assim que se apanhou a gatinhar, mexia em tudo o que podia. O contacto permanente com a terra e com a porcaria imunizou-a, de alguma forma, de determinadas doenças. Se alguma apanhava, era resolvida com mezinhas, rezas e endireitas. Havia uma pessoa a escassos quatro quilómetros de distância, muito entendida nestas coisas das doenças, a quem Cristina costumava recorrer em situações mais delicadas. Era um senhor de meia-idade, muito bondoso, que curava grande parte das pessoas que o procuravam, não a troco de dinheiro, mas sim de uns ovos, de um pato, de uma galinha, de um coelho etc.. No fundo era um médico acessível.

Daquela vez, parece que foi obra do demónio, a pequena Esperança, com pouco mais de um ano de idade, estava com febre havia uma semana, daquelas que davam para assar uma sardinha na pele, e não havia mezinha nem reza que a fizesse baixar. A pequena definhava a olhos vistos. As veias tornaram-se azuladas e os ossos despiram-se de carne deixando-se fazer notar através de uma pele que passou de rosada a branca leitosa. Os olhitos encovaram-se e rodearam-se de uma auréola negra e Esperança já nem força tinha para chorar. Em desespero de causa, a mãe agarrou na filha, embrulhou-a nuns trapos e colocou-a num pequeno canastro de vimes. Muniu-se de um guarda-chuva velho pôs o canastro com a pequena à cabeça e fez-se ao caminho à procura de um milagre por parte do médico acessível. Foi num dia do fim de Janeiro. Olhando para o céu víamos um manto cinzento de uma humidade que parecia poeira. A temperatura fria adivinhava pequenos flocos de neve para breve, mas Cristina não tinha alternativa, se não fosse, a pobre filha morrer-lhe-ia dentro de pouco tempo.

A neve foi benemérita. Não foi por sua causa que Esperança morreu, porque durante todo o trajecto, apesar das ameaças, não caiu um único floco, Esperança morreu, ainda antes de o médico acessível a observar, porque o destino, ou o que quer que seja, assim o quis. Chorosa, Cristina regressou a casa com a sua filha morta dentro do canastro e, no regresso sim, a neve fustigou-a sem piedade durante todo o percurso, obrigando-a mesmo a abrigar-se de vez em quando debaixo de uns pinheiros.

Uns meses depois, e já refeita do choque emocional que a morte da filha lhe causou, Cristina conheceu um rapaz numa das ladainhas religiosas em que costumava participar. Francisco era o seu nome. Era um rapaz pacato e sossegado. Apesar da sua baixa estatura era uma força de trabalho. Os seus pais tinham uma junta de vacas que ele lidava com toda a perícia na preparação das terras para as sementeiras e mais tarde nas colheitas. Com vinte anos, era um homem feito e só lhe faltava uma mulher para constituir um lar. Cristina foi a eleita dos seus sonhos. No princípio ela ainda teve um pouco de receio que quando ele tomasse conhecimento do seu passado, a botasse ao abandono, mas tal não aconteceu. Francisco sentia até pena dela e achava que ela era a menos culpada de toda a situação. Garantia-lhe que podia ficar descansada, que não era sua intenção enganá-la e que iriam ser muito felizes. Os seus encontros eram esporádicos e a maior parte das vezes cruzavam-se na lavoura, ele de aguilhada às costas conduzindo as suas vacas, ela ceifando erva para o gado. Gostavam um do outro e ainda não tinha decorrido um ano de namoro quando decidiram juntar os trapinhos.

Provavelmente tudo seria diferente se Francisco não tivesse aparecido naquele dia no lameiro onde, debaixo de uma chuva miudinha, Cristina ceifava a habitual erva para os animais, numa altura em que já tinha sido comprado o enxoval e tudo já estava pronto para a boda. Não teria ficado cego de raiva por a ver em amena cavaqueira com Malaquias. Não soube do que falavam, o que para ele também não tinha muita importância, bastou-lhe o simples facto de os ver próximos para que a sua alma escurecesse, para que o seu coração dilacerasse. Cristina não conseguiu ler-lhe nos olhos o ódio de morte que se iria instalar no lugar mais recôndito do seu coração e que mais tarde, a mais leve brisa transformaria numa verdadeira tempestade, porque se isso fosse possível, jamais teria casado com ele.

Casaram. Não foram precisos muitos anos para que a família crescesse. Tiveram seis filhos, primeiro vieram quatro rapazes e por fim duas meninas. Os filhos habituaram-se de pequenos ao mau feitio do pai que sovava na mãe a torto e a direito sem compreenderem porquê. A vida de Cristina tornou-se num verdadeiro inferno.

Uma ocasião em que tiravam, à forquilha e garrancho, o estrume do curral das vacas, Francisco num acesso inexplicável de cólera acertou com a forquilha no braço direito de Cristina. Não tinha, por certo, a intenção de lho partir, mas foi o que acabou por acontecer. A filha mais velha, que assistiu a tudo, apressou-se a pedir ajuda aos vizinhos próximos.

Foi preciso uma fatalidade destas para que Francisco caísse em si. Cristina de braço ao peito não podia trabalhar, o que era um verdadeiro transtorno na lida da casa. As filhas já iam fazendo muita coisa, mas ainda eram pequenas. Um certo dia em que estava muito triste e pensativo, uma das filhas perguntou-lhe porque é que ele batia na mãe e ele abriu-lhe o seu coração: “A tua mãe nunca devia ter dado troco àquele canalha.”

08/11/09

O ninho do mocho

Flash 4

O miúdo não sabe bem que sentimento o domina. Fez 6 anos há pouco tempo e, muito embora não seja imperativo ele ter que entrar este ano para a escola, o pai faz questão que ele comece a fase académica o mais cedo possível. Todos o têm por um garoto muito inteligente, dizem até que há-de ser alguém na vida. Ao que parece, não lhe vai ser permitido matricular-se na escola da sua aldeia, porque não aceitam matrículas de crianças com idade inferior a 7 anos: “Se não o deixam entrar aqui com 6 anos, vai ter que ir para Barreiros, porque lá, ao menos, não há problemas…”, diz o pai dele.

Este miúdo chama-se Manuel e vive com a avó, uma velhota com 70 anos. Não tem mãe, e o pai, do qual recebe uma ou duas visitas por mês ao fim de semana, trabalha em Lisboa.

Amanhã vai ser o seu primeiro dia de escola e por isso está apreensivo. Vai ter que apanhar uma carreira que passa a cerca de 100m da sua casa, num percurso de 3 Km. Creio ser a primeira vez que vai andar de carreira.

Estamos no mês de Outubro e a noite envolve já todas as casas da aldeia. A lua cheia banha de prata tudo à sua volta e o Manuel, agora deitado no seu exíguo quarto, completamente às escuras, porque já se apagou o candeeiro a petróleo, nem se apercebe do cirandar dos ratos no forro de madeira, nem do latir dos cães do povoado. Naquela pequena cabeça giram pensamentos à velocidade da luz com os quais, mais daqui a um pouco, vai ter pesadelos horríveis.

Sonha que o arrastam para uma fogueira preso por uma corda com a intenção de o queimarem. Não sabe a quem recorrer para pedir ajuda, pois não conhece ninguém. À sua volta todos o olham com desdém e com ar hostil. De repente, e sem saber que milagre se opera, vê-se livre das cordas que o prendem e sente que os seus braços têm a magia das asas de uma ave e em poucos segundos consegue alcançar as copas das árvores e misturar-se com os morcegos e outras aves nocturnas. Sobrevoa agora as casas da aldeia com voos rasantes de andorinha aos telhados prateados. Que sensação fantástica de liberdade. Mas já o coração se lhe aperta de novo, não consegue poisar. E agora? Ao passar junto a uma das carvalhas da escola, vislumbra o ninho de um mocho com o pai de sentinela, vigiando os filhotes. O sonho não lhe diz que não é tempo de ninhos, que esse chegará só na Primavera, e como tal este é um ninho verdadeiro. Experimenta poisar na carvalha, próximo do ninho do mocho e felizmente consegue. Sente-se, no entanto, incapaz de poisar no chão.

Acaba de acordar com um safanão da avó. “Vamos, Manuel, despacha-te que vamos ter de apanhar a carreira.” Diz ela. Entre o lavar as mãos e a cara, vestir e tomar o pequeno-almoço, decorrem alguns minutos, o tempo suficiente para chegar a hora da carreira. Já a caminho, a avó ordena ao Manuel que dê uma corrida, e no caso de a carreira chegar, a mandar parar. Ele assim faz. Corre com a pequena mochila às costas e ao vê-la levanta a mãozita esquerda. O condutor olha para ele, sorri e, ou porque pensa que o miúdo está a caminho da escola de Cepões, que é mesmo ali ao lado, e está a querer brincar, ou por qualquer outro motivo, não pára. Mas a avó tem outra interpretação das coisas e se a carreira não parou, foi porque Manuel não fez sinal de paragem ao condutor e então assenta-lhe uma valente chapada na cara e, completamente desorientada dos nervos, vai dizendo: “E agora? Vamos ter de ir a pé até Barreiros… Quando é que lá chegamos? Vamos despacha-me esses pés.” E vai-se distanciando dele cada vez mais. Já leva cerca de 20 ou 30 metros de avanço e essa distância entre ambos, vai-se manter até chegarem a Barreiros.

Como a avó não sabe onde é a escola, tem necessidade de perguntar. Entra dentro de um café e rápido obtém a resposta.

Bate à porta da escola e vem recebê-la um senhor que coxeia da perna direita e se identifica como professor Lameira. Tem um ar simpático e a avó explica-lhe o porquê do atraso. Ele diz que não há problema. “Deixe-o ficar.” Remata.

É agora que Manuel começa a ter a percepção de que o mundo não se resume à sua pacata aldeia, com as suas pacatas pessoas, de entres as quais as suas pacatas crianças com quem está habituado a brincar. Senta-se na cadeira que o professor lhe destina e deita-se sobre a secretária. E assim fica durante muito tempo. De repente sente os olhos encherem-se-lhe de lágrimas e o choro torna-se convulsivo. O professor Lameira não sabe o que fazer com ele. Ordena que se faça um intervalo antes da hora prevista com a intenção de fazer com que Manuel brinque com as outras crianças. Puro engano. Ele vai sentar-se a um canto debaixo de uma árvore, com a cabeça no meio das pernas e continua a chorar.

Do seu primeiro dia de escola, não tem mais nada para contar do que isto.

Durante uma semana, vai ser assim. No fim-de-semana, o professor Lameira, chamará a avó para lhe comunicar que o Manuel não pode continuar naquela escola, terá que ser feito o pedido de transferência de Barreiros para Cepões. E é isso que está a ser feito. Na próxima semana, Manuel vai deslocar-se a pé para a escola onde poderá aprender e brincar com os seus amigos de infância.

09/10/09

O candeeiro a petróleo

Flash 3

Vive com a avó. Muito embora tenha pai e mãe, não sabe quem são. Aliás, ele não tem a mínima noção do que é ter um pai ou uma mãe. Por certo a avó falou-lhe ocasionalmente neles, mas o seu espírito de criança, nesta altura, estará demasiado ocupado com o jogo do bugalho ou do pião, para prestar atenção a assuntos de tão pouca importância. A mãe, apesar de viver com ele sob o mesmo tecto, não passa de uma desconhecida deficiente mental, de quem ele, em conjunto com outros miúdos da sua idade fazem troça, obrigando-a a fugir na sua frente desviando-se do arremesso de pedras e outros objectos. O pai, zarpou para longe a bordo de um navio mercante. Na verdade, ele não sabe bem o que aconteceu, só sabe que os outros miúdos têm pai e mãe e ele não. Faustino, é um miúdo de 5 anos de olhar arisco e vivo, onde se esconde uma certa neblina de mistério. Aparenta ser saudável, apesar do corpito sujo, dos pés descalços, do ranho que lhe escorre do nariz e das feridas um pouco por todo o corpo provocadas por constantes quedas. O irmão, um pouco mais velho, é o seu inseparável companheiro, com ele brinca, com ele dorme, com ele se envolve em brigas fraternas, das quais sai sempre uma união mais forte. Ele é o seu confidente, o amigo, o pai, a mãe, no fundo é tudo.

Apesar de tudo sente-se feliz. Brinca quase todo o dia; constrói os seus próprios comboios com latas de conserva vazias, com a ajuda de um pau, faz rodar na sua frente um arco ou um pneu de uma bicicleta velha de altura superior à sua, joga à cabra-cega com os ovos tirados dos ninhos que descobre nas suas incursões pelas serras e pelos campos, joga ao bugalho e ao pião com os miúdos da sua idade e, sobretudo, deleita-se a correr atrás da deficiente mental a atirar-lhe pedras, enquanto ela põe as mãos na cabeça protegendo-se o melhor que pode.

Os tempos não são de abundância e por isso a sua alimentação não é propriamente a de um príncipe; a sopa de feijão e os feijões com couves, são, ainda assim, os alimentos de maior sustento, acompanhados com o pão de milho e centeio, cozido no forno de lenha mais ou menos de 15 em 15 dias. Por vezes umas sopas-de-cavalo-cansado revigoram-lhe o espírito e a alma.

A avó educa-o como pode e sabe. Não obstante a sua idade, solicita-o para todo o tipo de trabalho. Diz ela: “De pequenino é que se torce o pepino.”

Estamos no Inverno e hoje é um dia que ainda não parou de trovejar. A chuva tem caído ininterruptamente, por vezes em bátegas diluviais. São 8 ou 9 da noite e faz um escuro de breu. Chove desalmadamente e os animais, ovelhas, cabras e porcos ainda não foram “acomodados.” A avó agarra numa paveia de folhagem verde e encaminha-se para os currais no piso inferior da casa. Faustino segue-a descalço, de candeeiro a petróleo na mão. Não sei se tropeçou em alguma pedra perdida no caminho, o que é facto é que acaba de se desequilibrar, deixando cair o candeeiro e partindo a chaminé. O ribombar dos trovões e o gemido da água da chuva a embater na calçada, abafam o som do tabefe que a avó acaba de desferir na cara do garoto. “Não tens cuidado nenhum… vai buscar fósforos e uma vela à cozinha.” Diz-lhe ela em tom irritado. Ele obedece sem chorar e sem responder. Acabaram agora mesmo de pôr a comida aos animais e regressam à cozinha, ela à frente, ele atrás, onde o fogo da lareira os espera para secarem as roupas e aquecerem os corpos.

07/09/09

Domingo

Flash 2

Os galos dão o primeiro sinal do aproximar sorrateiro de mais um dia. O seu canto une o povoado com ondas sonoras, que se fossem visíveis, assemelhar-se-iam à teia de uma aranha. Se observarmos com atenção, chegaremos à conclusão de que entre eles, existe uma disputa no pódio de bem cantar. Surgem depois os melros com volatas melodiosas, anunciando que o sol está prestes a surgir detrás dos carvalhos centenários e frondosos do recreio da escola primária. É domingo e o sino da igreja que acaba de receber os primeiros raios de sol, movimenta-se alegre como um baloiço, fazendo soar badaladas em todas as direcções, chamando os fiéis para a missa que começa às dez horas. A azáfama é grande; faltar à missa, é o mesmo que dizer que deixa de ser domingo, para não falar da penitência a cumprir quando confessarmos ao senhor prior a nossa falta. Todas a pessoas do povo se preparam esmeradamente para visitar a casa do senhor.
Numa casa contígua à fonte velha que jorra água de uma nascente vinda dos lados do “moitedo” e que dadas as suas características de ser fresca no verão e tépida no inverno, é procurada por todas as pessoas, mora a Sra. Margarida com os seus dois filhos, o Avelino e o Manuel.

Entra-se para casa por uma porteira de madeira com cerca de três metros de largura, que quase sempre está aberta. Avançamos por um manto fofo de mato que o Manuel costuma trazer da serra em canastros à cabeça. Para já, este mato evita que as pessoas sujem os pés na lama, mas mais tarde, depois de curtido, servirá para estrumar a terra. Virando à direita, temos acesso ao piso superior através de meia dúzia de degraus de pedra de granito, no cimo dos quais existe um pequeno patamar. Se continuamos em frente, dirigimo-nos à cozinha, se virarmos à direita, entramos para a sala que por sua vez dará acesso a um pequeno quarto. A adega e o curral dos animais ficam por baixo daquelas duas divisões. A cozinha não tem chaminé e tem como única abertura, a porta de entrada. No tecto podemos ver as ripas e os caibros negros pelo fumo e pela fuligem, segurando as telhas caneladas. Algumas destas telhas estão partidas. Os utensílios da cozinha resumem-se a duas ou três panelas de ferro, três ou quatro bancos de madeira e um pequeno armário também de madeira, escurecido pela cinza e pelo fumo, onde se esconde a louça ou o que vai sobrando dela.

A Sra. Margarida tem à volta de 80 anos. Veste de preto desde que a conheço. Diz que é uma forma de guardar luto pelo marido, falecido há uns anos atrás, vítima de uma doença provocada pelas minas de minério. É uma senhora que tem uma corcunda que causa impressão. É de estatura baixa e quando anda quase chega com o nariz aos joelhos, pois para além da corcunda, a sua coluna vertebral faz quase um arco completo. A pele da cara é completamente enrugada e dos seus olhos pequenos corre um líquido cristalino que não sei distinguir se são lágrimas, se é resultado da idade avançada ou de uma qualquer alergia. Sustenta-se numas pernas muito finas, manchadas pelas varizes já secas do calor da lareira.

O filho mais velho é o Avelino. Aparenta ter à volta de sessenta anos. É simpático. Sempre que pode, junta-se aos miúdos pequenos para brincar com eles. Joga com eles as cartas e conta-lhes anedotas. Os pequenos adoram-no. É magro e quase sempre usa um colete cinzento e um chapéu preto de tecido. Fala muito pausadamente e está sempre bem disposto.

O Manuel é deficiente mental. Parece ter cinquenta anos. Anda quase sempre descalço, seja qual for a estação do ano. No corpo usa uns andrajos que se resumem a uma camisola esfarrapada a mostrar o peito forte e umas calças rotas que mais parecem umas ceroulas. Tem uma força descomunal, da qual se serve para pôr os canastros na cabeça carregados de mato ou de ramos de pinheiro. Ao contrário das outras pessoas, não costuma ir à missa, aproveita essa hora para ir buscar mais uma carrada. Acaba de chegar a casa com um canastro na cabeça, no preciso momento em que a mãe e o irmão chegam da missa. Atira o canastro para cima do manto de estrume e sobe as escadas esbaforido. Não sei o que se passa naquela cabeça demente, só sei que ouço a mãe a chorar, o irmão a discutir e ele a praguejar dizendo: “Parto a louça parto o caco”. E vai dizendo esta frase à medida que se ouvem cacos de louça a cair no sobrado. A mãe tenta protegê-la mas ele assenta-lhe uma lambada que a atira ao chão. E só desiste destas investidas, quando o irmão se serve de um pau e o ameaça com pancada. É por isso que ele acaba de sair de casa dizendo coisas imperceptíveis. E eu pergunto-me: “O que é que aqueles desgraçados vão comer e de que louça se vão servir?”

13/08/09

Avelãs

Flash 1
Ali perto, numa casa de pedra granítica de dois pisos, moram dois irmãos, ele, José, ela, Emília. Ela, mais velha, mora no piso de baixo formado apenas por duas divisões, se assim se podem chamar. Terá 70, 80 anos? Diz-se virgem e que assim há-de morrer. O tempo pintou-lhe o cabelo, ainda farfalhudo, de branco e a falta de marido e filhos toldaram-lhe a maciez do rosto. Nas pernas usa umas ligaduras arrancadas a um lençol velho branco, porque as varizes teimam em rebentar-lhe a qualquer momento. Os seus passos são cautelosos devido às quedas sofridas. Ele, bastante mais novo, mas aparentemente mais velho, mora no piso de cima, formado por uma única divisão e separado do de baixo por duas simples escadarias, uma de pedra no exterior e uma de madeira no interior. Tem uns cabelos ralos, desgrenhados e esbranquiçados. Terá 60 anos? Adoptou o álcool como companhia, o qual lhe foi fiel até à morte. É magro, talvez porque a sua alimentação não vai além dos copos de vinho que lhe vão dando a troco das jornadas a rachar lenha ou a cavar terra. Se lhe dão algum dinheiro, deixa de trabalhar até que ele se acabe. Por volta da hora de almoço, vai à taberna, almoça dois copos de vinho e traz numa garrafa de litro, que antes foi de gasosa, um litro de vinho para o jantar. Depois canta. Canta de manhã, à tarde, à noite, pela páscoa, em Maio, pelo s. martinho, pelo natal, enfim, canta. Ou será que chora?... Por vezes a irmã discute com ele, porque é quase meia-noite, ela quer dormir e ele não dá folga às cordas vocais.

Do outro lado da rua, a um nível dois metros mais baixo, existe uma aveleira. A bem dizer, são várias aveleiras de troncos não muito grossos, mas que todos juntos formam uma ramada exuberante. Estamos no mês de Setembro e no chão é visível um tapete aveludado de folhas de várias tonalidades, como que a anunciar a proximidade do Outono. Escondidas nessas folhas, as avelãs aguardam o desbravar das mãos de uma criança. E ei-la, descalça, com uns calções esfarrapados vestidos e em tronco nu, acocorada no canto mais recôndito, deslizando agilmente sobre as folhas, evitando fazer ruído, tentando não ser vista por ninguém, a encher os bolsos daqueles frutos rotos, de onde hão-de escapar alguns pelo caminho.

Mas, ai que sorte desgraçada, o Sr. Amado, o dono do terreno, aproxima-se de aguilhada em riste, à frente do carro de bois, carregado de lenha para fazer face ao frio cortante do Inverno e pára para descansar um pouco mesmo em frente da aveleira. O coração do miúdo parece querer saltar-lhe do peito e agacha-se o mais possível para não ser apanhado em flagrante delito. Tentativa infrutífera. O Sr. Amado já levanta a voz e vocifera: “Ah, seu tratante, que eu vou-te matar”. Pobre coitado que, por momentos, deixa de ter a noção de si próprio. Ao corpo junta-se a alma e os dois, em névoa, deslizam sobre o restolho à velocidade do vento. O sangue que brota dos seus pés, só agora, debaixo de um carvalho, a alguns quilómetros de distância, é visível, enquanto ele, com duas pedras vai partindo desconfiado as avelãs e saciando a fome.