Flash 15
Na aldeia todos a vêem como louca. A sogra não gosta dela.
Nunca gostou. Conta-se até que ela é a principal causadora da sua loucura.
Muita gente diz: “No seu tempo de mocidade, a tia Dolores era uma estampa de
mulher, bonita e desenxovalhada; depois que foi "enganada" pelo que é agora homem
dela, negando-se depois a casar com ela, deu em cismar, até que o cérebro se
lhe varreu, e os anos de internamento em vários hospitais psiquiátricos,
acabaram-lhe com a frescura e a jovialidade e fizeram dela o que hoje é.”
O marido é funcionário do estado e uma pessoa
respeitada por toda a gente da aldeia. Desde os seus tempos de menino que
qualquer ordem da mãe é para ser cumprida religiosa e cegamente à risca, não se
chegando a compreender se por medo se por respeito; tudo o que a mãe diz, é
para ele uma sagrada escritura. Ter casado com Dolores, foi como ter-lhe dado
uma facada no coração e ela nunca lho perdoará.
Objecto |
Hoje é domingo gordo e a sogra da Dolores prepara-se para ir
à missa. Ao descer as escadas de pedra que dão para a rua, depara-se com um
objecto de madeira, artisticamente trabalhado, encostado a um dos vãos das
escadas. “Foi aquela maldita que fez este trabalho. Um raio me parta se não
hei-de dizer ao meu filho quando chegar…” E com este pensamento a pairar-lhe no
espírito, arruma o dito objecto no curral das ovelhas e dirige-se para a
igreja. Creio não conseguir ouvir uma única palavra que o padre diz. O seu
íntimo fervilha de ódio e de impaciência; não vê a hora de contar ao filho o
que a esposa se lembrou de fazer.
Chegado do trabalho, o filho, como é habitual, antes de ir
ver a esposa e os filhos, vai visitar a mãe. Não demora mais do que cinco
minutos; é o tempo suficiente para ficar a saber da grande novidade. Colérico
e com a alma em polvorosa, dirige-se a casa onde Dolores, na sua inocência o
espera. “O que é que tu fizeste à minha mãe?” Começa por perguntar ao mesmo
tempo que lhe desfere uma bofetada na cara que quase a faz cair. “Sua vaca” e
mais uma bofetada. “Sua porca” e mais um pontapé. “Sua badalhoca” e mais um
puxão de cabelos, arrastando-a pelo corredor da casa. De nada serve ela dizer:
“Ó homem, não me batas, eu não fiz nada, juro que não fiz nada, eu seja
ceguinha, pela saúde dos nossos filhos.” Ao cabo de 10 minutos, Dolores, caída
no sobrado a um canto, já só consegue dizer: “Ai… ai…”
Um dos filhos da louca desgraçada chega a casa depois deste
episódio e ao ouvir a mãe neste lamento pergunta-lhe: “O que foi?” A mãe
conta-lhe o que aconteceu e mostra-lhe o corpo repleto de nódoas negras. O
filho vai guardar esta imagem numa das gavetas inapagáveis do seu cérebro.
Epílogo
Sabe-se agora que o autor do objecto deste flash foi um garoto de 13 anos para o apresentar
como trabalho da disciplina de trabalhos manuais e que, estando no meio da rua,
para evitar parti-lo, uma pessoa que ali passava com um carro de bois, agarrou
nele e atirou-o para o vão das escadas. Paz às almas dos intervenientes.